Entrevista: Rodrigo e Sinelma - De Florianópolis a Natal

Em busca de situações diferentes, novas amizades e um modo de vida diferente, o casal Rodrigo e Sinelma percorreu, de bicicleta, o trajeto Florianópolis a Natal.

Clube - O que levou vocês a decidirem fazer esta viagem?
Acredito que muitos de nós temos espírito aventureiro. Porém nos falta coragem para largar nossos confortos e partir para realizar nossos sonhos. Rodrigo já morou em muitos estados do Brasil, já estudou Física, é estudante de Turismo e gosta de viajar. Eu sempre pensei que seria interessante fazer uma viagem a pé. Quando iniciamos nosso relacionamento já havia a idéia de viajarmos de carro. Com o tempo mais uma vez fomos nos acomodando aos confortos com os quais a sociedade compra os nossos sonhos. Estávamos trabalhando 60 ou 70 horas por semana e completamente fora de forma. Em junho de 2001 eu e Rodrigo perdemos nossos empregos. Vimos então que era o momento de aproveitar a situação e fazer a nossa tão sonhada viagem.

Em outubro decidimos o destino. Fiz quatro cirurgias para resolver uns problemas de saúde. Em janeiro de 2002 recebi alta médica e saímos em março rumo a natal. É interessante comentar que quando tomamos a decisão o "universo conspira" a nosso favor. Dois dias depois que decidimos viajar Rodrigo estava indo ao centro de Florianópolis para olhar os bagageiros e encontrou no meio do caminho um cicloviajante colombiano - Omar - que estava vindo na direção de onde moramos. Rodrigo não teve dúvidas e convidou-o para ficar em nossa casa. Omar ficou conosco por uma semana. Logo depois em novembro recebemos um outro cicloviajante mexicano - Fernando - que também ficou conosco por 15 dias. Com eles aprendemos muito e tornaram-se nossos amigos. Nos correspondemos com eles até hoje.

Clube - Como foi o planejamento para a viagem? Esta foi uma parte muito gostosa e também muito importante. O primeiro passo é decidir que tipo de viagem queremos quer fazer. Qual o grau de autonomia queremos na viagem. Se vamos preparar a comida, como dormir, se vamos ficar ou não em hotéis ou pousadas. No nosso caso optamos em ter o máximo de autonomia e o mínimo de despesa, por isso tínhamos muito mais coisas para pensar e programar. Depois que decidimos, ficamos tão empolgados que levamos apenas dois dias para definir o trajeto, todas as cidades por onde passaríamos. Os outros preparativos levaram um pouco mais de tempo. Tínhamos todos os equipamentos de camping. Mandamos fazer os bagageiros em uma serralharia próximo de onde moramos. É importante planejar, mas também devemos aproveitar as oportunidades que aparecem no caminho. Replanejamos nossa viagem várias vezes durante o trajeto. A cada dia víamos o percurso do dia seguinte e decidíamos manter ou não o que já estava planejado. Em Salvador, por exemplo, íamos ficar na casa de uma amiga, mas não foi possível. Então decidimos ir ao único camping, que ficava bem afastado do centro. No caminho paramos no SALVAMAR e conhecemos o Capitão Rodrigues Lima. Aprendemos muito com ele e fizemos muitos amigos entre os salva-vidas.

Clube - Uma das bicicletas era uma reclinada. Qual a avaliação de vocês para esse tipo de bicicleta no cicloturismo? Eu (Rodrigo) andei uns 80% da viagem na reclinada. Ela é excelente para andar no asfalto. Apesar de levar um peso total de uns 50 kilos, meu desempenho foi muito bom e não tive nenhum problema físico. Considero uma ótima opção para viagens em estrada ou terrenos de terra batida. Além do aspecto técnico, tem o social. Com uma dessas, você nem precisa ir até as pessoas. Elas vêm até você espontaneamente. Se você tem como objetivo "viajar", a reclinada é a mais apropriada, mas não espere competir, chegar rápido, afinal o bom de viajar é percorrer os caminhos e não apenas fazer o deslocamento de um ponto a outro.

Clube - Quais foram os percursos mais difíceis da viagem? Quero enfatizar que o mais difícil em uma viagem de bicicleta é chegar em uma grande cidade. O trânsito sempre é muito perigoso e com uma bicicleta cheia de bagagens torna-se muito mais difícil. Outra dificuldade é na hora de ter que fazer um deslocamento de ônibus ou avião. Transportar a bicicleta é sempre um problema. Encontramos dificuldades na estrada, mas elas também aparecem quando você esta conduzindo um automóvel. Subidas são difíceis, mas quando vencidas, são um prêmio. Normalmente tem uma vista maravilhosa ou uma decida fantástica. Achamos que em termos de estrada a mais difícil foi no sul da Bahia, pois além de subidas, o acostamento estava em péssimas condições e para piorar tinha um trânsito intenso de "treminhões".

Clube - Vocês passaram por alguma situação embaraçosa ou engraçada? Como estávamos viajando com uma bicicleta reclinada sempre despertávamos risos no caminho. Era muito divertido ver a reação das pessoas que nós encontrávamos. Lembro que quando estávamos saindo em João Pessoa, um cara ficou gritando alto no meio de uma multidão que estava esperando ônibus para a gente parar. Quando paramos, ele veio correndo. Queria apertar as nossas mãos e desejar boa viagem. Foi muito legal. Também aconteceu em Santa Cruz no RJ, quando fomos comer em um restaurante de R$1,99, a dona virou-se e perguntou se Rodrigo era meu marido. Respondi que sim. E ela descascou um monte de desaforo, me xingando, que era uma pouca vergonha. Uma senhora com um garoto! Era o fim dos tempos! Depois acabou confessando que seu marido também era muitos anos mais moço que ela e acabamos nos tornando amigas. Ela disse que queria ver nossa reação. Confesso que tomei um susto.

Clube - Quais os trechos mais bonitos que vocês passaram? Cada lugar deste país tem sua beleza. Conhecemos muitos lugares fantásticos. Mas é legal frisar que não éramos colecionadores de paisagens nesta viagem. "Colecionamos" amigos e emoções. Vou citar alguns que valem a pena dar uma pedalada. A Rio-Santos, aliás, Santos-Rio. Muitas paisagens maravilhosas. Enormes subidas de tirar o fôlego e descidas que não conseguíamos fazer sem parar muitas vezes para tirar fotos. Subir o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, foi uma coisa maravilhosa. Aliás, pedalar no Rio foi muito bom. A chegada em Natal nas falésias me fazia pensar que estava pedalando em outro país. Foi fantástica. Mas uma grande surpresa também foi conhecer a bela Vitória-ES. Não imaginei que fosse tão bonita esta cidade.

Clube - Houve alguma situação de perigo? Nosso trajeto foi feito sempre procurando estradas secundárias. Nunca acampamos em lugares desabitados e sem proteção. Sempre ficamos em um posto do Salva-vidas, Bombeiros, Salvamar, Posto de gasolina ou mesmo em Camping do Camping Clube do Brasil, nosso apoiador oficial. Isso certamente nos proporcionou bastante segurança. Acho que uma única situação nos deixou amedrontados. Foi quando fizemos a estrada do Despraiado. Nos foi dito que era uma estrada "perenizada pelo tempo, ladeada de arvores frutíferas e com três cachoeiras". Não vimos nada disso lá. Sofremos muitíssimo, passamos medo, empurramos longos pedaços, etc. De modo geral podemos dizer que não sofremos nem presenciamos nenhuma violência, exceto o transito, é claro. Acreditamos que isso se deu em parte por que planejamos bem a viagem e não "dávamos mole" para o azar. Também somos otimistas e como já falamos, o universo conspirou a nosso favor.

Clube - Onde vocês dormiam, comiam e como faziam com os custos da viagem? Nosso orçamento era muito pequeno. Quando saímos de Florianópolis tínhamos muito pouco dinheiro, menos de R$ 1000,00. Contávamos com o apoio dos amigos da lista de ciclismo, para termos lugar para ficar em cada uma das capitais que iríamos passar. Pessoas que conhecíamos apenas por troca de e-mails. Nosso planejamento era chegar em cada cidade, ir até a prefeitura e pedir um local. Ficamos algumas vezes alojados em ginásios de esportes, centro de eventos fornecidos pelas prefeituras. Também ficamos em muitos quartéis de Bombeiros, Guarda Vidas e Salvamar. Além disso, quando chegamos em São Paulo conseguimos o apoio do Camping Clube do Brasil para usarmos suas instalação em cada local que passávamos sem nenhum custo. Durante a viagem eu e Rodrigo fazíamos umas bicicletinhas de arame de alumínio que nosso amigo Fernando nos ensinou e trocávamos por onde dormir ou por comida. No Rio uma amiga (Claudiléa) vendeu algumas para nos ajudar.

Clube - Vocês acham que o fato de estarem de bicicleta influenciou de alguma forma o modo como eram recebidos nos lugares? Certamente a bicicleta causa um grande interesse. As pessoas sempre se aproximam para oferecer ajuda, curiosas a respeito do que estamos fazendo. Como já falamos antes, estávamos viajando com uma bicicleta reclinada que chama muito a atenção das pessoas. Com uma bicicleta deixamos claro que não somos uma ameaça para ninguém. Além disso, estamos abertos para conversar, o que as pessoas falam nos escutamos e vice-versa.

Clube - Vocês passaram por inúmeras cidades de todos os tipos e tamanhos, e conheceram uma boa amostra do Brasil. Quais são as diferenças que vocês encontraram nas relações com as pessoas dentro de cidades grandes, cidades pequenas ou mesmo fora das cidades? Cidade grande é sempre um problema, tanto no nível pratico quando no filosófico. Tem as grandes distancias a percorrer, o trânsito pesado e perigoso, em geral o asfalto é péssimo, as pessoas em geral são estressadas, e tem a desconfiança e a violência como resposta básica pra tudo. A grande maioria, depois de um tempo, acabou por nos tratar bem, mas de qualquer forma já tinha "rolado um estresse". Nas cidades pequenas em geral a recepção é muito boa. As pessoas sorriam, e eram receptivas. Esta foi uma das hipóteses que comprovamos na viagem.

Clube - Vocês fizeram um percurso que faz parte do sonho de muita gente fazer. Têm recomendações para quem pretende fazer este roteiro ou parte dele? Ouvimos muitas vezes pessoas dizendo o quanto gostariam de fazer o Caminho de Santiago de Compostela e que este sonho estava tão distante devido ao custo. Nossa viagem é um caminho viável, se eu mesma com todos os meus impedimentos consegui realizar, qualquer pessoa com uma vontade verdadeira conseguirá. Acredito também que muitas coisas que se busca no Caminho de Santiago eu encontrei neste caminho pelo litoral brasileiro. A viagem interior a gente faz independente das paisagens que iremos encontrar, as realizações por conseguir transpor os obstáculos também vão acontecer neste ou em outro trajeto. Garanto que muito mais que conhecer pessoas e colecionar paisagens nós nos conhecemos a nós mesmos, nossas forças e fraquezas, nossos limites foram todos testados. Nossas convicções, o que queremos para nossa vida e que esta paranóia coletiva em busca do "ter" não é a real felicidade. Felicidade não é o carro último tipo e que as melhores paisagens não são aquelas vistas pelas janelas dos hotéis 5 estrelas, elas podem estar no acampamento ao ar livre com sua bicicleta estacionada ao lado. Na verdade falar deste trajeto é falar do contato com a natureza, da integração que a bicicleta nos proporciona com o meio, a possibilidade de ver as coisas de maneira simples, o prazer do desafio, subir e descer a montanhas com o vento na cara e tendo apenas nosso corpo como motor. Olhar para trás e ver o trajeto percorrido, os amigos que encontramos. Dormir, com o mínimo de conforto, mas pensando na cara das pessoas, incrédulas do que estamos realizando, e talvez imaginando que também são capazes. E elas podem sim, basta apenas ter a vontade, planejar de acordo com suas capacidades e enfrentar. Viajar de bicicleta é uma maneira de dizer que é possível sim, é possível sonhar e realizar seu sonho.

Fotos retiradas do site: www.percorrendohorizontes.hpg.com.br (extinto)