Caminho de Santiago de Compostela: As experiências e reflexões de um peregrino

CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA
as experiências e reflexões de um peregrino

O Caminho de Santiago é uma aventura para alguns e uma imensa transformação para outros. O seu grande valor é espiritual, pois antes de mais nada é um caminho de busca e de encontro consigo mesmo. "Um verdadeiro rito de passagem"...

Primeiras pedaladas em Saint Jean Pied de Port

Há muitos séculos, peregrinos do mundo inteiro percorrem suas trilhas atrás da mesma intenção, formando com seus passos, seu esforço e seu suor uma poderosa corrente energética que leva à transformação pessoal. Não é no sofrimento, mas sim no esforço necessário para cruzar as trilhas. Os mais altos montes em direção a Santiago de Compostela, na renúncia ao conforto, no desapego aos bens desnecessários, na dureza e nas dificuldades dos limites ultrapassados muitas vezes, que o peregrino chega à sua mudança, atingindo finalmente um estado que beira uma outra dimensão, na qual o fluxo de forças não encontra mais a densa resistência do corpo.

E é aí que o Ser passa a exercer o comando sobre o corpo, proporcionando a experiência da plenitude em uma viagem inesquecível, um marco na vida de quem a faz.

Travessia dos Pirineus Divisa França Espanha

Falar sobre o Caminho de Santiago sempre será um enorme prazer, pois com certeza as lembranças que trago comigo daqueles dias já foram imortalizadas. Chegar à pequena cidade de Saint Jean Pied de Port na França fora a concretização de um sonho. Lembro como se fosse hoje. Fiquei 5 minutos olhando aquela pequena rua que levava até o inicio das infinitas subidas dos Pirineus. Não acreditava que estava ali, dentre tantas incertezas, apenas uma coisa eu sabia: que ao final de 30 dias muita coisa aconteceria. A emoção da primeira pedalada é algo indescritível. Metro a metro eu estava então no Caminho de Santiago de Compostela.

Logo apareceram as primeiras setas amarelas que, depois de muitos dias, levar-me-iam até Finisterre. Aos poucos fui me acostumando com o silêncio, companheiro inseparável, mas que me ensinou muitas coisas. Mesmo às vezes interrompido pelo ruído das águas dos riachos ou pelos pássaros, ele, mais do que nunca, fez-me ouvir as mensagens que vinham do meu coração. Com certeza nunca esquecerei todas as horas que ficamos pedalando por pequenas trilhas, por montanhas, completamente solitários, mas também nunca esquecerei das músicas que cantávamos para amenizar os efeitos da solidão, da felicidade que era pedalar num dia de Sol e da força que surgia dentro de nós para encararmos os dias de chuvas e frio.

Gelo no alto do Pirineus

Li em algum lugar : "O peregrino dá sua energia ao Caminho tornando-o vivo, e o Caminho inicia o peregrino, levando-o ao encontro de seu potencial oculto". Concordo plenamente. Quantos peregrinos não encontrei a noite nos refúgios que estavam praticamente sem nenhuma força, mas que no dia seguinte, era possível vê-los saindo para caminhar às 6 da manhã como se fosse o primeiro dia.

Pontes medievais ao longo do caminho

Percorrer o Caminho de Santiago definitivamente não é tarefa fácil, mas certamente é impossível não olhar para trás e não dizer que tudo valeu a pena.

Em todo o caminho passamos por pequenos povoados e lugares tão antigos que era impossível não transportar-se para o passado e imaginar-se numa época medieval.

Muito mais do que paisagens maravilhosas e lugares mágicos o Caminho nos mostra a beleza de toda esta vida, que infelizmente hoje parece andar meio esquecida.

Digo isso pois será mesmo que todos dão valor a um dia de Sol? Ou será que todos dão valor apenas por ter levantado da cama sem dor para encarar o seu dia?

Povoado abandonado pelo caminho

Aprendizado
Quantas e quantas vezes não deitei na cama ou mesmo no chão com um pensamento muito forte que eu precisava descansar ali mesmo e recuperar-me totalmente pois no dia seguinte poderia ser ainda mais difícil. Mesmo quando acordava com aquela chuva caindo lá fora, nada fazia desanimar, pois tínhamos um objetivo e isso fazia-nos fortes.

 

O Caminho é exatamente como nossas vidas: você tem um objetivo mas não tem nem idéia do que pode acontecer até que o alcance. Acordávamos sem saber onde iríamos dormir (e se iríamos mesmo dormir). Não sabíamos o que iríamos comer (se é que iríamos comer), o que iríamos enfrentar, que tipo de terreno, que tipo de trilha, qual seria a paisagem ou o povoado que iríamos passar.

Longo caminho que nos leva a Santiago

Quando estávamos numa trilha e achávamos que iríamos por um lugar, lá estava a seta amarela que nos indicava sempre o caminho oposto do que pensávamos. Isso nos fazia mudar de planos a todos os momentos. Quantas e quantas vezes as setas indicavam que o Caminho deveria ser seguido pelo lugar mais difícil, exatamente como nossas vidas.

Era incrível como todo o Caminho parecia acontecer naturalmente. Mesmo no trecho mais difícil não havia como desanimar pois era sabido que assim que este trecho fosse transpassado, era possível sentir-se ainda mais forte para encarar algum outro ainda mais difícil. Continuar sempre, mesmo diante do cansaço que se fazia presente depois de um dia inteiro pedalado, no frio que queimava o rosto, ou mesmo sob o calor da Galícia e a chuva que caíra forte por dias inteiros.

Longas planícies na Meseta Central

Mas bastava olhar para o rosto dos outros peregrinos, para saber que não era o único a sentir as adversidades do caminho. A força surgia a cada "buen camino" ou "ultreya" desejado pelos peregrinos ou mesmo pelos raros habitantes dos pequenos povoados ao longo do caminho.

Os peregrinos... São eles que fazem realmente o caminho acontecer, tornam-se famílias uns dos outros ao longo do percurso. A noite no albergue era possível fazer os melhores amigos daquela noite. Todos se ajudavam, todos se respeitavam e isso era maravilhoso. Deixavam sempre uma grande saudade quando amanhecia e cada um seguia o seu ritmo.

Descida contemplativa pelo Vale do Silêncio

Mas com certeza lembrarei de todos eles ao longo da minha vida. E o Caminho é assim mesmo, conhece-se pessoas maravilhosas que você sabe que vai sentir saudades delas pelo resto da vida.

Os refúgios, se transformam na nossa casa durante a nossa jornada, são eles que nos acolhem de um cansativo dia e os hospitaleiros (responsáveis pelo refúgio) se tornam nossos guias do próximo trajeto, ou mesmo do povoado, nos indicando sempre com muita atenção, onde é possível comer, um bom lugar para visitar ou encontrar algum lugar para acessar a internet.

Chegada em Santiago de Compostela

Vi muitos deles cuidando dos peregrinos, tratando de bolhas, ajudando a carregar as pesadas mochilas daqueles que vão a pé e principalmente recebendo os peregrinos de braços abertos com um imenso sorriso no rosto, apagando assim o cansaço e nos fortalecendo para um novo amanhã.

Conhecer todos os povoados medievais, cada um com a sua beleza característica. As trilhas cheia de barro de Roscenvalles até Astrain. Conhecer o morro do alto do perdão. Passar pela ponte medieval de seis arcos em Puente La Reina. Conhecer a igreja de Santo Domingo de La Calzada. Conhecer a maravilhosa Catedral de Burgos.

Catedral de Santiago de Compostela

Pedalar pela infinita meseta central. Conhecer a catedral de Leon. Passar pela ponte romana de Hospital de Órbigos. Depositar a pedra, símbolo dos pecados, aos pés da Cruz de Ferro. Pedalar pelo místico e inesquecível Vale do Silêncio. Ficar maravilhado com a beleza ímpar de Molinaseca. Dormir no maravilhoso refúgio templário de Ponferrada. Implorar por forças ao ver as montanhas que antecediam o Cebreiro. Subir o lendário cebreiro sem descer da bicicleta.

Chegar a cidade de Santiago de Compostela fora a concretização de parte da nossa peregrinação, nada se iguala a esta emoção, principalmente que porque pudemos ver o botafumeiro em ação, chorei, sorri e rezei para ter forças para rodar por mais 600km que nos distanciava do nosso destino.

Chegada animada em Finisterre - fim da jornada

Chegar a Muxía e Finisterre, os dois finais da Rota Jacobea, fora um orgulho e tanto, pouquíssimas pessoas fazem os dois finais do Caminho no mesmo dia, e como premiação, se emocionar assistindo ao indescritível, inesquecível e maravilhoso pôr-do-sol em Finisterre. Daí pra frente foi tudo apenas aventura, chegar até Porto, e, Portugal pedalando sem nenhum acidente e após 1500km foi uma conquista pessoal.

Com certeza, nunca esquecerei de tudo que vivenciei ao longo desta viagem. Mas este texto não poderia terminar sem um agradecimento mais do que especial, ao meu amigo José Luiz Coelho, que mais do que amigo, transformou-se num irmão para mim. Agradeço pela força dada quando eu precisei, pelo companheirismo, pela paciência nas horas difíceis durante todo o Caminho, pelos diálogos que tanto acrescentavam e faziam crescer ainda mais nossa amizade e principalmente por todos os momentos de alegria compartilhados.

Agradeço a todos que nos ajudaram, a todos que me deram força enquanto eu estava no caminho, à minha família, aos meus amigos, aos peregrinos que conheci ao longo do caminho (que Deus os abençoe aonde quer que estejam neste momento). A todos o meu sincero carinho e agradecimento. E posso dizer que voltarei, assim que o Caminho quiser...

Depois de tantos quilômetros não tem como não dizer que não valeu à pena

Do sempre peregrino e com certeza uma pessoa diferente daquela que partiu do Brasil com um sonho em mente, uma mochila e uma bicicleta.


Warley Toschi Oliveira – Estudante de Engenharia e Analista de freios. Iniciou no cicloturismo em 2004, percorrendo o Caminho de Santiago. Realizou diversas viagens de bike, destacando-se: Caminho da Fé, Caminho do Sol, Circuito das Frutas, Circuito do Vale Europeu, projeto Jalapão em bicicleta, Argentina e Uruguai.