Estrada Real: Entre Ouro Preto (MG) e Paraty (RJ)

ESTRADA REAL Entre Ouro Preto (MG) e Paraty (RJ)

Quando dizíamos aos mineiros que nossa pedalada começara em Ouro Preto e tinha como destino Paraty, no Rio de Janeiro, a reação era quase sempre a mesma. Respondiam, com seu gracioso e truncado sotaque, que "cêis tão animádimais, sô". Para quem não conhece o mineirês, eles queriam dizer que estávamos muito animados, no que acertavam em cheio.

Ouro Preto vista por cima. Ao fundo, a pedra do Itacolomy

Durante 12 dias, pedalamos pelos 680 quilômetros da Estrada Real, caminho que conecta circuitos turísticos tradicionais de Minas, como a Trilha dos Inconfidentes, as Terras Altas da Mantiqueira e o Circuito das Águas, além da Serra da Bocaina, na divisa entre Rio e São Paulo.

Muito antes de atender ao turismo, a Estrada Real integrava os primeiros núcleos mineradores de Minas Gerais, as vilas paulistas do Vale do Rio Paraíba do Sul e o litoral do Rio de Janeiro.

O roteiro que percorremos com nossas bicicletas também é conhecido como Caminho Velho do Ouro, pela grande relevância que teve na consolidação do ciclo econômico do metal precioso. Com o declínio do ciclo açucareiro, no final do século XVII, os bandeirantes paulistas partiram em expedições em busca do ouro e entraram para a história como os grandes descobridores da rota que conduzia ao Eldorado. Mas há relatos de que os méritos bandeiristas foram alcançados graças à fundamental contribuição dos índios que lhes revelavam os caminhos.

O ciclo do ouro foi curto, pois a maioria do metal era de fácil extração, concentrando-se nos aluviões dos rios. Porém, apesar de breve, teve grandiosa importância, já que a massa aurífera encontrada foi considerada a maior desde a queda do Império Romano até o século XVIII. Entre 1700 e 1750, datas do apogeu e queda do ciclo, formaram-se as primeiras vilas mineradoras na rota do Caminho Velho, como a Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, atual Ouro Preto, de onde iniciamos a viagem de bicicleta.

Visual entre Ouro Preto e Ouro Branco

PATRIMÔNIO AMEAÇADO - Famosa pela arquitetura barroca e pelas obras de Aleijadinho, a cidade teve sua imagem arranhada recentemente. Houve ameaças ao título de Patrimônio Histórico da Humanidade, conferido pela UNESCO em 1980 como reconhecimento ao projeto de conservação elaborado pelo arquiteto português Viana de Lima.

O fato, desencadeado pela ocupação desordenada e especulação imobiliária existentes na cidade, chamou atenção inclusive do ministro da Cultura, Gilberto Gil, que antes de assumir o posto já prometia ações para preservar patrimônios como aquele.

De Ouro Preto, que apesar dos problemas não deixa de encantar com suas ladeiras de pedra, igrejas monumentais e as enormes repúblicas de estudantes instaladas em casarões históricos, seguimos por uma estrada asfaltada, muito tranqüila e propícia à pedaladas, já que é proibida ao tráfego de ônibus e caminhões. O primeiro trecho é marcado pela alternância de subidas e descidas, típico de Minas, e por antigas pontes de pedras, paralelas à estrada, que nos remetiam à importância histórica do caminho.

Outra característica do trajeto, repetida ao longo de toda a viagem, é a presença de enormes montanhas de pedras, avistáveis de muito longe, que geralmente abrigam pequenas cidades em suas bases. A primeira delas é Ouro Branco, situada nas fendas da montanha do Deus-Te-Livre, um dos primeiros arraiais estabelecidos na Estrada Real.

A parte inicial da rota é conhecida como Trilha dos Inconfidentes, onde monumentos históricos rememoram as ações dos que conspiravam contra o império português. A Casa de Tiradentes, uma típica construção colonial embasada em pedra e vedada com adobe e pau-a-pique, abrigava as reuniões secretas dos conjuradores e lhes servia de pouso. Próximo ao casarão encontra-se um monumento ao líder maior dos inconfidentes, situado ao lado de uma velha gameleira onde foi exposta sua perna. Nota-se que os pedaços do rebelde esquartejado foram colocados em locais distantes, já que no centro de Ouro Preto, a 60 quilômetros dali, há outro monumento onde os algozes expuseram a sua cabeça.

Com dificuldades de obter informações sobre o caminho, acabamos nos desviando da rota e fomos parar em Lagoa Dourada, que aliás não tem lagoa nenhuma, embora detenha um título peculiar: é a terra do rocambole, com diversos estabelecimentos que comercializam o doce. Lá conseguimos novas referências sobre a Estrada Real, bastante imprecisas, pois acabamos pedalando mais de 20 quilômetros à toa. Uma distância pequena para quem viaja de carro, mas um tormento para os cicloviajantes.

Minha magrela na maravilhosa trilha entre Prados e Tiradentes

Apesar do erro, voltamos à rota histórica e chegamos a Prados, cidade marcada pelo artesanato em madeira. Convicto da urgente necessidade de informações precisas, decidi pedir ajuda na Polícia Civil. Um inspetor muito solícito nos indicou duas pessoas que foram fundamentais no sucesso da nossa empreitada. Eram o Cesar do Totiquim e o Ilceu Carvalho, nativos e profundos conhecedores da região, que em 1998 percorreram todo o Caminho Velho em 10 dias de cavalgadas. No bar do Totiquim, passamos horas conversando. O resultado foi um banho de informações e a percepção ampliada sobre a importância do trajeto que saboreávamos lentamente montados sobre os cavalos de ferro.

PEREGRINAÇÃO EM TERRAS TROPICAIS - Atendendo minha curiosidade sobre quando foi descoberta a vocação turística da Estrada Real, os cavaleiros me falaram sobre o geólogo Attila de Godoy, um dos pioneiros na concepção do trajeto como uma grande trilha de peregrinos, a exemplo do Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Em conjunto com um professor universitário, ele fundou o Instituto Estrada Real, atendendo à demanda da cidade de São João Del Rei por um projeto de desenvolvimento econômico. A solução para a economia apontada por Godoy era a criação de um produto turístico como a trilha espanhola que, segundo ele, movimenta cerca de 2 bilhões de dólares por ano.

A idéia do geólogo é fomentar um turismo de natureza cultural e ecológica, permeado por uma mentalidade preservacionista. Enquanto elaborava seu projeto, Attila fazia verdadeiras pregações pelas cidades que compõem os circuitos turísticos da Estrada Real, estimulando nas populações a auto estima necessária para o reconhecimento das belezas naturais e culturais de suas regiões. Ao invés de divulgar locais de turismo separadamente, pretende-se oferecer ao turista a possibilidade de percorrer o caminho completo e conhecer tudo o que houver de interessante por lá. Assim, todos os municípios da estrada seriam contemplados com a opção econômica baseada no turismo.

 

Trilha entre Prados e Tiradentes. Ao fundo, o paredão que acompanha toda a trilha

CONTINUANDO, POR TRILHA - Para sair de Prados, optamos por uma trilha de 14 km que atravessa a serra de São José e leva à cidade de Tiradentes.

Indicada pelos cavaleiros, a picada é de beleza ímpar. Ela acompanha o tempo todo um paredão íngreme e vistoso, de escarpas esbranquiçadas, que emoldura resquícios de Mata Atlântica.

No percurso, descansamos da pedalada tomando água mineral da serra e degustando suculentos morangos silvestres, encontrados em dezenas de arbustos carregados na beira da trilha.

A matriz de 480 kg de ouro, em Tiradentes

Tiradentes é a terra natal dele próprio, Joaquim José da Silva Xavier, mas outros 11 inconfidentes nasceram ou moraram por lá. Uma das mais abundantes em massa aurífera superficial no período da mineração, a cidade relembra os tempos de opulência em monumentos como a Matriz de Santo Antônio. Construída em 1710, possui altar banhado por 480 kg de ouro, o que lhe garante o título de segunda igreja mais abundante em ouro do Brasil. A fachada construída por Aleijadinho é outra impressionante atração do templo.

Balsa sobre a represa Camargo, entre Caquende e Capela do Saco, construída com um trator acoplada à uma plataforma de ferro

 

Viajando de bicicleta, as mudanças na paisagem, às vezes imperceptíveis para viajantes motorizados, são bastante sensíveis. Pedalando próximo à represa Camargo conhecemos ambientes pouquíssimos povoados, daqueles onde não se avista uma alma viva durante dezenas de quilômetros. Na deserta Capela do Saco, acabamos dispersando uma pelada disputada por poucas crianças. Para chegarmos até ali, cruzamos a represa numa embarcação atípica, feita de um trator com pás no lugar das rodas acoplado à uma pequena balsa de metal. Possivelmente desacostumadas à presença de um casal andando em bicicletas carregadas, as crianças foram todas para suas casas assim que desembarcamos no local.

Cachoeira na região de Carrancas

Ainda no trecho despovoado, a serra de Cruz das Almas surge anunciando Carrancas, notável pelas opções diversas aos amantes do ecoturismo. No entorno da cidade há dezenas de cachoeiras. Próximo a uma delas, a cachoeira dos Índios, inscrições rupestres demonstram a importância arqueológica da região.

Depois de um estio de uma semana, a chuva finalmente nos pegou, forçando uma parada na região ainda semi-desértica de Cruzilia. Com o atraso, fomos obrigados a pedalar de noite. O trecho noturno não teria maiores problemas se não tivéssemos visto, de dia, um emaranhado assustador de teias e suas centenas de aranhas fechando a estrada de terra onde quase não passava carros. Apesar de psicologicamente abalados, felizmente escapamos de protagonizar um ataque de aracnofobia.

CIRCUITO DAS ÁGUAS - Conhecemos Caxambu de charrete, pois a chuva continuava vetando o uso das bicicletas. A maior atração da cidade é o Parque das Águas, que abriga 11 fontes curiosas. Através delas vertem águas de diversas naturezas químicas, como as radioativas, bicarbonatadas, alcalino-terrosas, sulfurosas e acídulo-gasosas. O gosto não é lá muito agradável, mas quem as bebe pode se curar de variadas moléstias, desde cálculos renais até sífilis. Reza a lenda que a princesa Isabel reverteu sua esterilidade tratando-se com água do local, jorrada de uma fonte que hoje é conhecida pelo seu nome.

Fontes no Parque das Águas, em Caxambu

Em Itanhandu fomos recebidos por um verdadeiro repentista, derrubando minha convicção de que os músicos de improviso só existiam lá pelo Nordeste. Desprovido do seu violão, empunhou um pedaço de cano para simular o instrumento e cantarolou o repente, criado na hora para ilustrar a nossa história, as aventuras do casal que viajava de bicicleta.

O repentista (de chapéu) que ilustrou nossa viagem com música

Um verdadeiro espetáculo de arte popular, perfeito para aliviar o estresse do trajeto arriscado que tínhamos acabado de enfrentar. Fiquei torcendo para nosso amigo artista conseguir uma ponta no Ratinho, já que cantar no programa é o maior sonho da sua vida.

Finalizando o trecho mineiro, entramos em São Paulo pela Serra da Mantiqueira, divisa natural entre os estados.

A mudança é dramática, já que saímos das pequenas cidades de Minas, quase todas integrantes dos deliciosos circuitos turísticos, e nos deparamos com a pesada industrialização na região de Lorena e Guaratinguetá. Nesta parte, trafegamos paralelamente à Via Dutra pela antiga Rio-São Paulo. Felizmente, hoje em dia esta é secundária ao trânsito, que é frenético na atual ligação entre as metrópoles do sudeste.

Descendo de Minas para São Paulo pela Mantiqueira

Atravessamos a Dutra em direção à Cunha, curiosamente um dos maiores munícipios do estado, apesar de ter apenas 25.000 habitantes. As antigas vilas do vale do rio Paraíba, pontos de pouso e abastecimento das tropas do caminho do ouro, atualmente são pouco povoadas, mas os atrativos são muitos, notadamente o artesanato em cerâmica e as belezas naturais.

No topo da pedra da Marcela, a 1840 de altitude, avista-se um panorama composto pelo litoral carioca e a região da serra da Bocaina, outro divisor natural entre São Paulo e Rio de Janeiro.

O último dia da viagem requer folêgo extra para pedalar os 25 quilômetros, quase todos em subida, entre Cunha e o topo da serra.

A primeira recompensa, quase no alto da montanha, é a cachoeira do Mato Limpo, água cristalina vertendo à beira da estrada para resfriar nossos corpos exaustos. Na divisa de estados o asfalto cessa, mergulhamos no estado do Rio por uma ladeira de cascalho em pleno Parque Nacional da Bocaina.

A guerreira na descida da Serra da Bocaina

Em meio à mata densa da serra uma pequena clareira descortina Paraty, linda e pequenina. Esperamos 12 dias para vê-la e agora ela enchia nossos olhos com um azul intenso, amplificado pelo sol forte que nos acompanhava.

Foram 18 quilômetros de descida atravessando a exuberante Mata Atlântica, um verdadeiro prêmio depois de tanta subida forte pelo caminho.

Entramos em Paraty por ciclovia, sonhando com que todos os caminhos fossem tão propícios a um transporte alternativo como aquele. Na iminência de mais uma terrível guerra motivada pelo petróleo, demos nosso recado pela paz percorrendo 680 quilômetros sem depender de uma gota sequer do caldo negro.

No décimo segundo dia de viagem, uma janela na serra da Bocaina mostra Paraty com um azul intenso

Por Fernando Angeoletto, quinta fase de jornalismo - UFSC. Viagem feita em parceria com a bióloga Elisa Serena Gandolfo Martins


Fernando Angeoletto - jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina. É cicloturista desde criança, quando dava voltas ao redor da casa com sua CaloiCross, sonhando que viajava até a casa de seus tios em outras cidades. É um dos fundadores da Caminhos do Sertão (www.caminhosdosertao.com.br), que opera roteiros de cicloturismo no Sul do Brasil.
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