Pedalando nos Tigres Asiáticos

Subimos nas bikes carregadas e ainda com os uniformes suados, pedalamos para o hotelzinho que vimos na avenida principal, estávamos em Batu Pahat, em nosso segundo dia de pedalada pelo sudeste asiático. Naquela noite um clima estranho nos chamou a atenção, nas calçadas a cidade inteira como que se amontoava, com um ar de expectativa nas faces. Seguimos pedalando, quando sons estridentes invadiram a noite, em questão de segundos a avenida estava tomada, dragões coloridos  serpenteavam sobre as cabeças da multidão, regidos pelo som estridente da batida de pratos, um legítimo espetáculo popular. Estávamos no meio da última noite de comemoração do carnaval malaio, onde os mais devotos, desfilavam com objetos perfurando a pele. Hastes de ferro de três metros atravessavam a pele da bochecha de alguns; espadas nas costas; o desfile seguia adiante com as penitências. 

Sim, definitivamente estávamos na Ásia, os sons, os cheiros e as exóticas imagens daquele festival estavam ali a nos comprovar. Pedalar ao longo do sudeste asiático, ao longo de uma das 25 rodovias mais famosas e bonitas do mundo, parecera uma idéia fantástica, pois desde o início buscávamos uma maneira autêntica de contato com tão diferentes hábitos. Que nos permitissem sentir na pele a realidade da vida na região. Chegamos à Ásia por Singapura, símbolo de modernidade, de negócios e do mundo ocidental em pleno sudeste asiático. Escolhemos a ilha-cidade-estado de modo a minimizar o choque cultural, onde tivemos os últimos preparos antes de começarmos a pedalada.

Atravessando a fronteira da Malásia, entramos a cada quilômetro mais na realidade asiática, observando, de cima da bicicleta a cultura, seus hábitos, os sorrisos de sua gente hospitaleira, que não poupava esforços para correr em nossa direção para nos cumprimentar. Muçulmanos em sua maioria, usando seus trajes típicos, onde as mulheres, apesar do calor e umidade intensas, escondem o corpo, mostrando apenas o rosto e as mãos. Selamat Datang!", (Bem Vindo!) disse Abdul Haleem, dono de um moderno posto Esso à beira da estrada, próximo à Malacca, na costa oeste da Malásia, quando nos viu parar as carregadas bicicletas para um descanso. A cada dia mais, melhor nos adaptávamos ao ritmo das pedaladas, à temperatura média  dos 37º graus, e a apimentada culinária malaia, chegando a uma média de quase 100 km por dia. Em uma semana de bicicleta pedalando rumo ao norte desde a fronteira, viramos 500 km nos arredores de Kuala Lumpur, capital da Malásia. Já há a trinta km da cidade as Petrona Twin Towers, maiores prédios do mundo, guiavam as pedaladas rumo à cidade. O que parecia inicialmente impossível, entrar pedalando em Kuala Lumpur, não demorou a se concretizar, pois as torres, avistadas de qualquer ponto da cidade, apontavam o caminho pelos complexos viadutos em meio ao trânsito intenso.

Pedalando cada vez mais a leste, em direção ao centro do país, entramos na região das serras (o país é quase que inteiramente plano), onde numa noite, após intenso esforço físico não achávamos onde dormir. Quase dez horas da noite, a caminho de Mentakap, chegamos a uma delegacia. Após uma breve negociação, em um inglês precário, e alguns momentos tensos acabamos dormindo no chão da delegacia. Três dias de pedaladas, quatro horas de trem e outras duas de barquinho após, chegaríamos ao Taman Negara, maior parque nacional da Malásia peninsular (pouco maior que o Parque Nacional de Itatiaia). Formado pela densa floresta tropical é um dos locais ainda se acham tigres, e panteras em seus ambientes naturais, cortado por um grande rio, o parque oferece diversos trekkings, sendo bastante visitado por europeus.

Deixando para trás o interior do país, tomamos o trem das selvas, em que seguiríamos até Kota Bharu, na fronteira com a Tailândia. Com as bicicletas presas no vagão de cargas, seguimos viagem por nove horas em meio à mata tropical. Num vagão em que éramos os únicos ocidentais em meio aos muçulmanos e que apesar dos quase 40º graus, tinham o corpo coberto. Descemos do trem em Kota Bharu, capital de um dos maiores estados da Malásia, maior reduto da cultura malaia e centro de devoção religiosa muçulmana no país. Após uma volta  pela cidade, entramos num prédio circular, um dos mais típicos e coloridos mercados do país, como descobriríamos depois. O ambiente não demorou a nos impressionar, o cheiro forte, o ar abafado, junto a luz de tonalidade amarela, filtrada por uma enorme clarabóia ao teto, nos proporcinaram uma rápida imersão na realidade local. A intensa movimentação dos muçulmanos em suas vestes típicas pelos estreitos corredores completavam o visual, onde em diversos tablados, verduras, coloridos temperos, e produtos exóticos, como lulas e outros seres do mar, secos ao sol e amontoados em cestos eram oferecidos por mulheres gritando em malaio.

Deixamos a Malásia para trás após 750 km de bicicleta e 600 trem, deixando a crença muçulmana para recebermos a benção de buda, que zela pelas almas de 95% dos tailandeses. Já na fronteira, o antigo reino do Sião, saúda os viajantes com letreiros no incompreensível alfabeto, chocando-os logo na chegada.  Pouco a pouco a vegetação, se modificava e cada vez mais atravessávamos extensos trechos alagados para a plantação de arroz. Onde os locais, com seus típicos chapéus cônicos trabalhavam com arados precários em meio ao verde reluzente das mudas plantadas, ajudando o país a manter o título de maior exportador mundial de arroz. As dificuldades básicas de comunicação, voltaram a nos complicar, chegando à primeira bifurcação da estrada, compreendemos nossas limitações, não éramos sequer capazes de procurar no mapa o  nome das cidades indicadas nas placas. Raras eram as que tinham tradução, e a solução estava em, nos casos complicados, pararmos ao lado das indicações e esperar até que alguém chegasse, quando em mímica pediríamos que lesse a placa.

Em Narathiwat um encontro com um grupo de night-bikers tailandeses veio coroar a noite. Muito bem recebidos, conversamos noite adentro, num misto de inglês precário e mímicas provando bebidas energéticas exóticas e comidas típicas. Estávamos na região dos Kaw-Lae, barcos tradicionais de pesca, detalhadamente pintados, que vinham cedendo lugar ao progresso. 

Numa oportunidade única, ao passar por Pase Yawo, o último vilarejo onde ainda se produzem os barcos, pudemos presenciar sua construção e pintura, numa expressão profunda de arte. Alcançamos Krabi, na costa do mar de Andaman, já com quize dias de viagem, e 1050 km desde Singapura. Pedalávamos agora num litoral de paisagens fantásticas, mundialmente conhecido pela limpidez de suas águas, pelos enormes paredões rochosos, recobertos de limo que se erguem em meio ao mar. À beira das estradas, muitos eram templos budistas que cruzávamos, todos ricamente ornamentados, encontrando inúmeros monges, envoltos em suas vestes de tecidos alaranjados a caminhar nos arredores.

A chegada em Chumphon, marcou a reta final até Bangcoc, pedalávamos há já uma semana, desde que deixáramos as ilhas, sem parar nenhum dia para descanso, e assim seguiríamos até o final, nos 700 km restantes. Muitas as vezes, em que pedalando noite adentro, para nos protegermos do sol, que chegamos a pequenas cidades sem ter onde dormir.  A hospitalidade tailandesa, nesses momentos, foi nos crucial, como quando em gestos, fomos convidados a dormir na casa de moradores locais, ou mesmo em correios e delegacias. Saindo de Hua Hin, a apenas três dias do nosso objetivo, tivemos um encontro inesquecível, um casal de italianos de 65 anos, com suas bicicletas carregadas, pedalando em sentido inverso o mesmo trajeto que nós. Comemoramos e encontro e após a troca de informações e desejos de boa sorte seguimos nosso caminho.

Em mais 150 km chegaríamos a Damnuen Saduak, um dos mais importantes e preservados mercados flutuantes da Tailândia. Onde num colorido intenso, no começo de cada dia, é possível assistir a movimentação de pequenas canoas cheias de frutas, verduras, artesanatos e especiarias da região. Num final de tarde, em meio ao trânsito caótico, e a poluição sufocante, Bangcoc se apresentara misteriosa e imponente a nossa frente. A chegada, após quase quarenta dias e 2200 km de pedaladas atrás, nos levou ao sucesso da viagem. Entraríamos novamente no caos de uma das maiores metrópoles do mundo, onde em cada metro quadrado percebe-se estar em um local diferente, fascinante.

É andando lado a lado com monges nas calçadas, que pessoas do mundo inteiro, comendo no mc'donalds ou nas barraquinhas das ruas podem sentir um pouco da realidade única desta capital, principal portão de entrada para o sudeste asiático.