Na cinzenta manhã de 3 de abril de 2006, eu saí de casa pela última vez, pelo menos a última vez por um bom tempo. O destino era curto e comum: Parque do Ibirapuera. Debaixo da típica garoa paulistana eu cheguei no Monumento às Bandeiras, para então mudar completamente meu destino. Naquele momento o Pedal na Estrada saía do papel e eu me despedia de todos, para dar início a esta viagem de quase 3 anos de destino não tão curto. No primeiro dia algumas pessoas pedalaram e me acompanharam até Sorocaba. No segundo, apenas o Leonardo e eu na estrada. Poucos dias depois eu estava completamente sozinho nas rodovias brasileiras, seguindo para o Paraná. Este começo, apesar de vibrante, estava sendo uma grande adaptação para mim. Era o início de uma vida sem endereço fixo, sem telefone, sem companhia, sem destino certo, de muitos encontros, desencontros e, também, de muitas despedidas.
A hospitalidade brasileira fez com que eu não precisasse ficar uma noite sequer num hotel ou hospedagem. Dormi no chão, em sofás, em corpo de bombeiros, em garagem, em hotel 5 estrelas e em camas muito confortáveis. Conheci muita gente interessante pelo meu caminho, que parecia ser uma seqüências de coincidências boas. Porém, uma estrada não é feita só de coisas boas. Conheci gente que não via além do seu próprio umbigo. E conheci gente que se pudesse apenas prejudicaria. Mesmo assim eu continuei meu caminho, mais feliz do que nunca, por ver tudo o que eu havia planejado, meses antes, estar acontecendo da melhor maneira possível. Foi nesse clima de vida nova que eu cheguei até as Cataratas do Iguaçú. Era o fim do Brasil. O fim do português. O fim do arroz e feijão. O fim de uma hospitalidade despretensiosa. Eu apenas não sabia disso ainda. Subi na bicicleta mais uma vez e desta vez me despedi do meu país. Atravessei a tumultuada Ponte da Amizade, com um pouco de receio, e já estava no Paraguai. Sem olhar para trás eu segui em frente, para sair o mais rápido possível das desordenadas e tumultuadas ruas de Ciudad del Este. Nem precisei ir muito longe para travar contato com uma outra realidade. A violenta desigualdade brasileira havia acabado, agora me restava apenas a pobreza de uma país sem leis.
Pela principal estrada do país eu pedalei em direção a Assunção. Foram necessários poucos dias para cruzar o território paraguaio e chegar em sua capital, onde encontrei alguns simpáticos brasileiros e uma outra realidade dentro do país dos guaranis, que me fez esquecer, por alguns dias apenas, que estava numa das regiões mais pobres da América do Sul. De Assunção foi preciso apenas uma curta pedalada para que eu chegasse na fronteira argentina e me desse conta que eu não falava e não entendia quase nada do idioma espanhol. A incomunicabilidade resultava em solidão e a solidão em um aprendizado rápido, especialmente, do novo idioma. Junto com a Argentina chegaram mais mudanças, algumas boas e outras nem tanto. Era apenas o início de algumas semanas dentro das províncias pobres do país: Formosa e Chaco.
Foram centenas de quilômetros em terreno plano e árido, sem água e sem muita vida pela Ruta 16, que corta boa parte do norte do país. No meio deste caminho, foi a vez de chegar na seca e empoeirada Pampa del Infierno, que fez jus ao seu nome e me deu uma noite de febre de 40 graus. Nesse dia precisei procurar o precário hospital do inferno para me medicar e curar minha sinusite e minha febre que havia chegado em seu pior grau. Este problema respiratório, somado à poeira e a escassez de água da região fizeram com que eu pedalasse de máscara por alguns dias, até que a poeira baixasse. E um dia a planície acabou e eu dei de cara com os Andes.
Entrei em Salta e dei início a outra fase da pedalada era a vez da montanhas, da altitude e do frio de matar os descuidados. Quando estava prestes a chegar na bela cidade de Salta tive um problema, o câmbio da minha bicicleta quebrou (até hoje não sei como) e eu fiquei restrito ás três coroas dianteiras em meio ao frio e aos ventos da montanhosa região. Depois de alguns quilômetros tive que admitir que não era possível continuar daquele jeito. Foi a minha primeira carona e também assustadora. Subi com a bicicleta numa caçamba de uma velha caminhonete, onde sujeitos, com cara de ex-presidiários, tatuagens borradas e uma faca na mão olhavam para mim e minha bicicleta.
De qualquer forma, cheguei vivo e inteiro em Salta, onde esperei 2 semanas até o meu novo câmbio chegar pelo burocrático correio argentino. Com a bicicleta já nova eu dei a primeira pedalada em direção às alturas desta alta cadeia de montanhas. San Salvador de Jujuy, Purmamarca e então a Cuesta del Lipán, cujas fechadas curvas me levaram dos 1.200 para os 4.200 metros de altura em apenas um dia. Era o início e a porta de entrada para o congelante Deserto do Atacama.
Foram cinco dias pedalando contra um vento de trincar os ossos, mesmo com todas as camadas de roupa que eu poderia usar, não deixando quase nenhuma parte do meu corpo exposta ao frio direto. Cinco dias acampando entre pedras, montanhas e vicunhas, dentro da gelada barraca que era a única proteção que eu tinha contra o frio de menos 20 que fazia no lado de fora durante a noite. Cinco dias sem muito oxigênio acima dos 4.000 metros de altitude. Cinco dias em que minhas energias se esgotaram por completo e numa noite, quase congelando, cheguei a pensar que iria morrer ali mesmo.
Mas não era a minha hora, esta cedo para morrer, e eu cruzei as montanhas para chegar à primeira cidade chilena, San Pedro de Atacama. Os dias de deserto resultaram em febre e alguns problemas, que me exigiram alguns cuidados especiais. Depois de uma necessária recuperação eu desci, sempre pelo deserto, que parecia não ter fim, até a grande Antofagasta, quando vi o mar depois de alguns meses dentro das regiões mais secas do mundo. O mar trouxe um outro clima para a pedalada, parecia que eu pedalava mais leve pelo simples fato de ter o mar ao meu lado esquerdo e o deserto ao meu lado direito enquanto seguia rumo ao Peru.
Em Arica, minha última cidade chilena, no extremo norte do país, eu decidi colocar a Bolívia em meu roteiro. Embarquei para La Paz e o frio forte estava de volta na capital mais alta do mundo. No país mais pobre do nosso continente eu vi paisagens de tirar o folego, como o Salar de Uyuni e suas lagunas. Vi cenas de fortes, como as minas-trituradoras-de-seres-humanos de Potosí e as tristes condições da população do país. E pedalei por caminhos bonitos e emocionantes, como a Estrada da Morte para Coroico e ao redor do Lago Titicaca. Acompanhado pelas águas azuis do lago navegável mais alto do mundo eu entrei no meu último país do continente o Peru. Logo em Puno, uma de minhas primeiras cidades no país, eu tive um problema com a comida sem higiêne da região, que me levou para o banheiro e posteriormente para o hospital, onde fui obrigado a tomar soro para recuperar os líquidos que eu perdia rapidamente.
No hospital, fiquei sem saber o que era pior, a higiene da cozinha peruana ou as precárias condições dos hospitais do país. Depois de alguns dias, algumas tentativas e erros, estava curado e pronto para seguir para Cuzco, onde encontrei um amigo brasileiro, já premiado pela cozinha inca ele estava com febre tifóide. Enquanto ele se recuperava eu fui para Machu Picchu, que apesar dos preços altos é um lugar impressionante. Ao voltar das famosas ruínas, nos dirigimos para Arequipa e o Cañon de Colca, para ver os seus gigantes condores.
De Arequipa eu, sozinho de novo, entrei na Panamericana e pedalei mais de 1000 quilômetros até a cidade de Lima, quase sempre dentro do deserto e de algumas regiões interessantes, como a Península de Paracas e as Linhas de Nazca, que continuam sendo um mistério para o mundo. Durante esta gigante rodovia encontrei, além de areia e montanhas, alguns ladrões e pessoas roubadas, o que fizeram com que eu desse início a uma fase de redobrada atenção para conseguir chegar intácto em Lima. Cheguei ileso na capital peruana. O caminho tinha seus perigos, mas não era tão alarmante como eu ouvira dizer. Na capital peruana eu me despedi do meu continente, dando conta dos problemas de cada país, da desunião e desigualdade de cada nação, na corrupção que caminha livremente pelas ruas, mas também, percebendo alguns de seus segredos e belezas, muitas vezes escondidos em seu interior: na sagrada Pachamama, na Virgem Maria no topo do altar, nas ruínas de um império dizimado, nos idiomas nativos, nos traços sofridos dos índios, na necessária folha de coca e no jeitinhode resolver os problemas. Embarcar para a Nova Zelândia foi mais que o início de uma nova etapa do Pedal na Estrada, foi também uma grande despedida deste continente que eu, hoje, posso chamar de casa.
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Arthur Simões Cardoso Neto, 25 anos, é formado em Direito, professor de yoga, ciclista e esportista convicto. Ele executa o Pedal na Estrada viajando por mais de 30 países sobre uma bicicleta, com o patrocínio da Bristol-Myers Squibb e o apoio de Fuji Bikes, Dennova e Base64. www.pedalnaestrada.com.br |