Por Walter Magalhães (jul/2004)
UMA BICICLETA, UMA LATA E MUITAS IMAGENS Uma aventura fotográfica de bicicleta pela Estrada Real
Após passar mais de um ano elaborando o planejamento, superando as dificuldades de obter patrocínio e os vários obstáculos que surgiram durante esse período de preparação, realizei nos meses de julho e agosto de 2004 mais um sonho: percorrer de bicicleta uma das mais importantes rotas da história do nosso país - a Estrada Real. Desde 1997 venho desenvolvendo o Projeto Viagens, que consiste em realizar expedições de cicloturismo em diversos lugares, seja no Brasil ou no exterior. Após retornar de cada expedição, o objetivo do projeto é divulgar e incentivar o cicloturismo através de exposições fotográficas e palestras. Esta expedição, "UMA BICICLETA, UMA LATA E MUITAS IMAGENS", completa a 3a etapa do Projeto Viagens.
Um dos desafios dessa aventura está na maneira escolhida para registrar todo o seu percurso. Decidi utilizar diversos recursos de mídia, desde a forma mais primitiva ou rústica até a mais moderna. Por isso, parti para essa expedição com uma câmara fotográfica convencional, uma câmara fotográfica digital, uma filmadora digital Mini-DV e, por fim, uma câmara fotográfica rústica feita em lata de alumínio, processo esse conhecido como PIN-HOLE ou CÂMARA ESCURA. Essa forma inusitada de registrar uma viagem, explica o porque de "UMA LATA E MUITAS IMAGENS" no nome da minha expedição. Um outro objetivo da expedição foi realizar palestras em escolas e universidades, e despertar nas pessoas a curiosidade pela arte da fotografia e seu princípio através da técnica do PIN-HOLE. Realizar entrevistas com historiadores, pesquisadores e possíveis personagens de algumas localidades por onde passasse. Inicialmente esta seria mais uma viagem "solo" que faria, mas nos últimos dias que antecederam minha partida, Daniel Maldonado, filho de um amigo, se juntou a mim na primeira etapa da viagem. Pedalamos juntos entre as cidades de Diamantina e Mariana. Depois, por causa da falta de tempo, Daniel seguiu à frente e cada um fez seu percurso "solo" até Paraty. Para realizar esse trabalho precisei de um tempo de viagem maior do que o normal. Percorri os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro em 48 dias de viagem, completando um pouco mais de 1.000km pedalados entre Diamantina (MG) e Parati (RJ).
Estrada Real ou Estradas Reais?
Após iniciar minhas pesquisas sobre a busca do ouro e do diamante pelo interior do Brasil, descobri que a trilha do ouro, como eu costumava escutar, era na verdade conhecida há muito tempo como Estrada Real. Hoje a Estrada Real vem sendo o centro das atenções de empresas, instituições, historiadores, pesquisadores e principalmente do Governo do Estado de Minas Gerais. O Instituto Estrada Real, um órgão criado pela FIEMG (Federação da Indústria do Estado de Minas Gerais), tem como objetivo principal alavancar um grande pólo turístico em nosso país através da Estrada Real, buscando a recuperação e a conservação dessa rota onde se encontram uns dos maiores patrimônios históricos e culturais de nossa história. Acredito que a integração do Instituto Estrada Real com várias agências de turismo, estabelecimentos, empresas e até mesmo aventureiros atuais como caminhantes, cicloturistas e cavaleiros, contribui para consolidação e o sucesso da Estrada Real no século XXI e que revela mais caminhos e muito mais histórias do que se possa imaginar. A medida em que ia lendo textos, matérias, livros e consultando outros aventureiros que fizeram alguma parte do percurso, meu envolvimento e entusiasmo aumentavam cada vez mais, e isso fazia minha imaginação criar um cenário todo especial de como seria minha aventura... Era uma viagem antes mesmo de partir. Em um dos livros que consultei e que me serviu como base principal para traçar a minha rota pelas localidades da Estrada Real, descobri que existem vários caminhos surgidos ao longo da história. Foram caminhos abertos e percorridos em busca do ouro e diamantes no interior do Brasil nos séculos XVII e XVIII pela Coroa Portuguesa, escravos, índios, bandeirantes, aventureiros, tropeiros. A Estrada Real possui três caminhos principais: - o "Caminho Velho" que compreende o percurso entre as cidades de Paraty e Ouro Preto, abertos por grupos de paulistas de formação espontâneas denominadas "bandeiras". O "Caminho para o Distrito Diamantino" que liga as cidades de Ouro Preto a Diamantina e o "Caminho Novo" criado pela Cora Portuguesa para facilitar a transposição da Serra do Mar ligando o Rio de Janeiro a Ouro Preto (MG).
Esses eram os caminhos oficiais de acesso ás minas de ouro e de diamantes na região de Minas Gerias. Pessoas e todo o tipo de mercadoria tinham obrigatoriamente que circular por esses caminhos, sendo considerado crime de lesa-majestade a abertura de caminhos alternativos. Existia também um quarto caminho, o "Caminho da Bahia", cujas referências são poucas para se determinar quando surgiu e qual grupo o abriu. A minha aventura, em pleno século XXI, foi fazer o Caminho para o Distrito Diamantino e o Caminho Velho, pesquisar, descobrir e conhecer de perto um pouco mais da nossa história.
A Câmara Escura, PIN-HOLE ou "foto da latinha"!
Já há alguns anos me dedico a fazer experimentos e a tirar fotografias utilizando latas de alumínio como câmara fotográfica. Para isso faço pesquisas buscando informações sobre o assunto através de matérias em revistas, internet, livros e pessoas que utilizam esse processo conhecido como câmara escura ou PIN-HOLE (buraco de agulha). Já fiz vários cursos para crianças e adultos com o objetivo de incentivar ou despertar o interesse e a curiosidade das pessoas pela fotografia. É muito legal observar a reação de cada pessoa quando descobre que é possível tirar fotografia com uma simples lata. Durante a expedição levava a minha latinha de alumínio bem à frente do guidão da bicicleta, e não me cansava de explicar para as pessoas que ela era a minha câmara fotográfica. Muitos não entendiam e achavam que a câmara fotográfica estava na verdade, guardada dentro daquela pequena lata de Nescau. Isso já era motivo para arrancar gargalhadas dos amigos curiosos que conhecia em cada cidade que passava. Para entender um pouco mais sobre a câmara escura, segue uma breve explicação sobre esse processo que foi muito importante para fotografia.
CAMINHO PARA O DISTRITO DIAMANTINO - DIAMANTINA A OURO PRETO
Diamantina - Diamantina, em Minas Gerais, é uma cidade que resguarda muito da nossa história e cultura. Já à primeira vista encanta pela arquitetura colonial, pelo calçamento antigo, seus becos e pela paisagem da região. Algo misterioso parece estar no ar. Uma sensação de voltar no tempo ou de imaginar como seria a época em que era conhecida apenas como arraial do Tijuco, no início do século XVIII. O primeiro registro da descoberta do diamante na região é de 1714, onde pedrinhas de diamantes eram vistas, apanhadas e, ao mesmo tempo, jogadas fora pela população sem ter o conhecimento de que se tratava.
Ficamos quatro dias na cidade procurando vivenciar e aprender o que fosse possível em tão pouco tempo, tudo o que envolveu a Estrada Real. A cada dia na cidade um local novo para se visitar, um "causo" contado por algum morador sobre um popular personagem local e que arrancava muitas gargalhadas de todos que estavam presentes. A hospitalidade e simplicidade foram a marca registrada do acolhedor povo mineiro por todos os lugares que passei. Conhecemos a vila operária de Biribiri, de estilo inglês, havia no local a Companhia Industrial de Estamparia. A caminho da vila é possível tomar banho nas cascatas do Setinela e do Cristal. A Casa de Xica da Silva, Casa de Juscelino Kubitschek, Casa da Glória e o famoso Passadiço, Mercado dos Tropeiros (hoje Mercado Municipal da cidade) e o Caminho dos Escravos (paredões de pedras construídos pelos escravos onde é possível avistar a cidade ao fundo) são algumas das principais atrações da cidade. Com o título de Patrimônio da Humanidade concedido pela Unesco, a bela Diamantina foi escolhida como nosso ponto de partida nessa aventura fotográfica pela Estrada Real. Uma aventura de sonhos, histórias e de muitas descobertas rumo a Paraty. No domingo, um dia antes da nossa partida, vários cicloturistas chegavam de sua aventura. Viajantes exaustos e sujos pela poeira da estrada, com espírito realizado e cheio de emoções, contavam entusiasmados os detalhes das suas jornadas para os aventureiros de corações cheios de expectativas e que iniciariam sua viagem no dia seguinte. Entre esses, estava eu, também emocionado e com os olhos cheios de alegria por estar ali, com pessoas que pareciam ser da mesma família, ajudando, trocando informações e dando risada das situações engraçadas daqueles que acabavam de chegar. Ali, com toda aquela gente reunida nas mesas do bar sobre o calçamento antigo da cidade, vivenciei um dos finais de tarde mais divertidos da minha vida. Comecei então a sentir a emoção de estar na Estrada Real.
Partida -Na segunda-feira pela manhã já na praça da cidade, tiramos algumas fotografias e seguimos para nosso primeiro dia de viagem com destino a São Gonçalo do Rio das Pedras. Saímos com algum atraso, por volta das 11h e com o céu já carregado de nuvens cinzentas. Sentimos a incômoda presença da chuva. Nos primeiros quilômetros já foi possível sentir o peso da bike num percurso que tinha um certo grau de dificuldade. A paisagem com vegetação típica do cerrado e com a presença de muito quartzo me encantava a cada quilômetro pedalado. Os veículos eram raros e somente o barulho do vento e dos pneus na estrada quebravam o silêncio. O Daniel se mostrava emocionado por estar ali e as paradas para fotografias eram inevitáveis. Após uns 10 km, chegamos a uma descida brusca de 2,5 km que nos levou até o Ribeirão do Inferno e em seguida tivemos que encarar uma subida muito forte de 3 km. Seria como imaginar um "V" para se ter uma idéia de como o relevo é acidentado. Mais tarde após pedalarmos por terreno menos acidentados passamos pelo povoado de Vau, um arraial bucólico, de pessoas simples e atenciosas, situado às margens do rio Jequitinhonha.
São Gonçalo do Rio das Pedras - No final da tarde estávamos em S. Gonçalo do Rio das Pedras e nos hospedamos na pousada e venda do Ademil, um senhor muito simpático, cheio de histórias e lendas para contar. Depois de um banho quente com água aquecida por serpentina no fogão à lenha e alguns minutos numa soneca relaxante, fomos para a venda onde a esposa do Sr. Ademil nos preparou um delicioso jantar. De sobremesa comemos doce de abóbora e doce de leite, e experimentamos o licor de guabiroba feito por ele mesmo. Uma delícia! Ele me concedeu uma entrevista onde contou várias histórias e lendas. Nos mostrou também sua coleção de cachimbos utilizados por escravos, encontrados nas minas da região nos dias de hoje. E explicou que, o motivo de ter várias garrafas de cachaça com cobras dentro, era para mostrar os tipos de cobras existentes na região. Quando perguntei se tinha gente que tomava aquela cachaça, ele seguramente respondeu que sim, me fazendo acreditar que não havia problemas, pois seus amigos e seu filho já tomaram diversas vezes daquelas garrafas. Mas logo em seguida argumentou: - eu mesmo não arrisco! Uma das lendas da região, segundo Sr. Ademil é impressionante, pois se trata de uma tragédia. Dizem que no Ribeirão do Inferno havia uma mina com no mínimo 150 escravos trabalhando na mineração do diamante, quando a serra veio abaixo deixando todos presos lá dentro. O local é conhecido como Portão de Ferro e o Ribeirão do Inferno possui esse nome por causa desse acidente. Essa é apenas uma entre várias histórias da vida sofrida dos escravos. Só para se ter uma idéia, a vida útil de um escravo nas minas era de 7 a 12 anos, devido a acidentes, disenteria, malária e infecções pulmonares. Deixamos a tranqüila S. Gonçalo do Rio das Pedras e seguimos pela Estrada Real numa paisagem de tirar o fôlego, já com uma descida forte onde foi preciso utilizar bem os freios. Em seguida foi preciso encarar uma bela subida onde tive que descer da bike e empurrar para não morrer ali mesmo. Quando cheguei no topo parei juntamente com o Daniel e ficamos observando a vista panorâmica da região. Um local ermo, com pouquíssimas pessoas cruzando o nosso caminho. Esse momento me levou à reflexão de como teriam sido as primeiras expedições para se chegar no centro do país.
Milho Verde - Milho Verde é praticamente uma fileira de casas à beira da estrada de terra, com pouquíssimas ruas secundárias. E o que chama mesmo atenção é a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres do século XVII, localizada num largo gramado com uma vista muito bonita da região. São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde são distritos da cidade de Serro surgidos em decorrência da Estrada Real no século XVIII. Na saída de Milho Verde para Serro pegamos uma subida curta de 1,5 km, mas que chegou a tirar o fôlego de tão forte que era. Uma hora depois chegamos no arraial de Três Barras onde fica a nascente do rio Jequitinhonha. Aqui o rio é considerado um divisor de vegetações. Ao norte a vegetação típica de cerrado e com grandes formações de quartzo, também típicas na região de Diamantina. Após o rio em direção ao sul, a vegetação começa a se tornar típica de mata atlântica.
Serro - Já em Serro, uma cidade que preserva a construção de sobrados do século XVIII, foi convertida de arraial para vila em 1713, com o nome de Vila do Príncipe. A terra do queijo como é conhecida, me causou a impressão de um lugar sujo e sem cuidados, mas já no centro histórico a beleza arquitetônica realmente encanta. No alto de uma longa escadaria que liga a parte baixa com a parte alta da cidade encontra-se a Igreja de Santa Rita construída no século XVIII. Há muitas igrejas espalhadas pela cidade revelando a importância das posições sociais da época. O frio na região de Minas Gerais é intenso nas noites de inverno e durante os dias de sol o calor é forte e aumenta nas subidas fazendo aumentar a perda de líquido com a transpiração. Qualquer vento deixa o suor bem gelado.
Seguimos pela BR-010 que liga Serro a Conceição do Mato Dentro, uma rodovia de terra com tráfego de ônibus, caminhões e veículos que ao passarem por nós em alta velocidade deixavam uma densa camada de poeira suspensa no ar por um bom tempo. Depois de Itapanhoacanga as subidas são longas e em muitos trechos surgem as incômodas "costelas de vaca" e areia fofa, dificultando um pouco mais a pedalada. Não fizemos os mais de 60 km que dividem as duas cidades, pois acampamos no único bar que existe na estrada, bem no meio do percurso. Para nossa sorte, naquela noite no "Bar do Dé", aconteceu o Arraia do Dé, uma festa julhina bem animada que durou a noite toda. Alguns quilômetros à frente já no outro dia, chegamos no arraial de São Sebastião do Bonsucesso entre Serro e Conceição do Mato Dentro, um ponto de parada para os tropeiros.
Conceição do Mato Dentro - A cachoeira do Tabuleiro, a maior de Minas Gerais e a terceira maior do Brasil com seus 273 metros de queda livre, está localizada em Conceição do Mato Dentro, mais precisamente no povoado do Tabuleiro. Demos um descanso para as bicicletas e fizemos uma trilha até o alto de uma montanha onde ficamos de frente para a cachoeira. Um visual maravilhoso! Vale a pena conhecer. Devido ao mau tempo, não pudemos fazer a trilha que leva até a base da cachoeira. As cidades estão sempre no alto de um morro ou abaixo num vale, indicando sempre que vamos enfrentar uma boa subida na chegada ou na saída em cada uma delas.
Em Morro do Pilar não foi diferente, o primeiro dia de viagem com chuva e muitos atoleiros, várias descidas e subidas. Foram 30 km num dia muito frio onde quase nos perdemos por falta de informação diante de uma bifurcação que surgiu na estrada. A falta de sinalização talvez seja o principal problema para os atuais aventureiros.
Caraça - Mais alguns dias na Estrada Real passarmos por Ipoema, a cidade do Tropeiro e chegamos a Bom Jesus do Amparo onde termina a parte de terra da Estrada Real. A partir daí seguimos por asfalto até Barão de Cocais onde se encontra o Santuário do Caraça fundado em 1774. Próximo à sede do parque encontra-se o antigo Colégio do Caraça onde D. Pedro II já ficou hospedado. Apesar de estarmos no asfalto por pura falta de opção a paisagem é sempre bela, com a Serra do Caraça nos acompanhando até Catas Altas, uma pequena cidade histórica antes de chegar a Mariana.
Mariana - No dia seguinte após pedalarmos exatos 53 km por estrada de asfalto com muitas subidas chegamos finalmente a Mariana, antigamente Vila do Ribeirão do Carmo, um dos mais antigos povoados de Minas Gerais e a primeira capital do Estado. Em plena efervescência, em Mariana e Ouro Preto acontecia o Festival de Inverno com várias apresentações de grupo de música, dança, teatro, oficinas e exposições de fotografia e artes plásticas. Assim que chegamos no centro histórico da cidade fomos carinhosamente recebidos pelo Sr. Márcio, um excelente fotógrafo e proprietário da loja Marezza Photo. Uma amiga havia me indicado o Sr. Márcio para nos ajudar com informações e no que fosse preciso. Atenciosamente, baixou as fotos da câmara digital para alimentar a minha página na internet. Mariana é uma cidade extremamente agradável, com um povo acolhedor e atencioso. Na Catedral Basílica da Sé encontra-se um órgão de tubos alemão de 1701 e nos finais de semana são feitas algumas apresentações. A comida típica mineira é um convite para a hora do almoço nos vários restaurantes espalhados pelo centro histórico. As bicicletas tiveram um pequeno descanso nos dias de nossa estada, pois utilizamos ônibus para nos locomover entre Mariana e Ouro Preto. Nosso quarto dia em Mariana foi marcado pela nossa separação, pois o Daniel decidiu seguir viagem para resolver problemas pessoais em nossa cidade. Era sua primeira viagem "solo" e certamente seria uma experiência que marcaria sua vida para sempre. Eu fiquei e participei de uma oficina de fotografia com latinhas de alumínio em Ouro Preto. Até aqui tudo foi sensacional, a cada quilômetro rodado uma paisagem diferente, lugares e novas amizades, um novo caminho aberto na Estrada Real em minha mente e que em breve terá continuidade até a chegar a cidade de Paraty no litoral do Rio de janeiro.
CAMINHO VELHO - OURO PRETO A PARATY
Ouro Preto - Em Mariana e Ouro Preto o Festival de Inverno estava em plena efervescência com várias apresentações de grupos de música, dança e teatro, oficinas e exposições de fotografia e artes plásticas. Apesar de Ouro Preto estar repleta de turistas resolvi ficar mais tempo na região e acabei participando de uma oficina de fotografia. Conheci pessoas muito legais e que me acolheram com muita hospitalidade, sobretudo em Mariana, onde fiquei hospedado, uma cidade bonita e bem mais tranqüila que sua vizinha Ouro Preto. Depois de subir os intermináveis 22km que separam as duas cidades, seguindo pela rodovia, cheguei a Ouro Preto e fui logo visitar o Parque Estadual do Itacolomi, um local interessante para ser visitado. Ouro Preto parece ter uma magia especial no ar. Com suas íngremes ladeiras de pedra, becos, casarões históricos e enormes igrejas, realmente encanta seus visitantes.
Ouro Branco - Pedalando pelo Caminho Velho, segui por uma estrada de asfalto com muitas subidas e descidas logo nos primeiros quilômetros e que até poucos anos atrás ainda era de terra. Meu destino nesse dia era a cidade de Ouro Branco.
Foi um dia de superação devido ao calor e às longas subidas de serras. Ao longo do percurso, a presença de antigas pontes de pedras, paralelas à estrada de asfalto, conduz a imaginação do viajante a um outro tempo da Estrada Real. Lugares como a Serras de Ouro Branco e Itatiaia, ambas próximas à cidade de Ouro Branco, e picos como do Itacolomi em Ouro Preto e do Itambé próximo a cidade do Serro, serviam de orientação para os antigos viajantes. Hoje são verdadeiros cartões postais, obras da natureza, cheias de histórias e que encantam os olhos dos atuais viajantes.
Lagoa Dourada - No Caminho Velho da Estrada Real a maior parte do percurso é feita por asfalto, mas os poucos trechos por terra reservam surpresas. Em Lagoa Dourada uma pessoa que demarcava a Estrada Real me fez uma planilha para evitar a rodovia. Logo nos primeiros quilômetros, depois de uma descida forte por uma trilha foi preciso desmontar todo o equipamento da bicicleta e ir passando uma bagagem de cada vez, inclusive a bicicleta, por uma ponte improvisada com apenas dois pequenos e finos troncos de árvore, mas que era a única alternativa para transpor um riacho que não constava na planilha. Foi uma aventura me equilibrar naqueles troncos. Passei por dentro de fazendas, plantações e tive momentos de rara beleza quando um bando de maritacas ficou me sobrevoando com um barulho ensurdecedor.
Prados - No final desse dia no alto de um morro fui presenteado com um belo pôr-do-sol, enquanto do outro lado luzes acesas me mostravam cidade de Prados. Sem dúvida, mais um dia com vários momentos emocionantes. Dias como esses me faziam questionar o meu retorno para casa. Dá vontade de continuar na estrada pelo resto da vida.
Tiradentes - Para chegar a Tiradentes segui pela serra de São José, um enorme maciço de pedras escarpadas por onde circunda a trilha. Um lugar de beleza singular pela mata quase fechada onde pude ver de perto vários macacos e aves. No ponto mais alto da Serra, o visual encanta qualquer pessoa. No vale logo abaixo, estavam as cidades de Tiradentes e São João Del Rey. Fiquei ali parado quase uma hora, contemplando a beleza do lugar antes de descer a serra até Tiradentes.
Após ficar hospedado na fazenda do Sr. Átila Godoy, o pioneiro no projeto de revitalização da Estrada Real, atravessei a represa de Camargo numa pequena balsa acoplada a um trator que no lugar de rodas tinham pás que faziam a propulsão na água. De um lado Caquende e do outro a Capela do Saco.
Carrancas - Era um domingo de muito frio e com o tempo ameaçando chover. Após a travessia tomei a estrada em direção a Carrancas numa região quase deserta. As fazendas pareciam abandonadas e numa bifurcação me perdi.
Sem ninguém para dar informações pedalei uns 10km na direção errada. Fui salvo pela Serra de Carrancas ou Cruz das Almas, que também foi mais um ponto importante de referência para os aventureiros do passado e que também me serviu de referência ao perceber que estava me afastando do local em direção oposta. Carrancas é famosa pela grande diversidade de belas cachoeiras que existem ao seu redor.
Fazenda Traituba - A minha próxima parada foi na fazenda Traituba. Com mais de 200 anos e construída para hospedar D. Pedro I que praticava a caça de veados na região, é hoje uma referência histórica que vale a pena conhecer.
"Cavas" - Entre as cidades de Cruzília e Baependi, conheci um lugar no mínimo curioso conhecido por "cavas". As "cavas" são profundos barrancos chegando a ter mais de 5 metros de profundidade. São encontradas no alto das montanhas por onde passa a Estrada Real e são encobertas pelas árvores dando a impressão de uma passagem secreta. Em alguns locais quase não se vê a luz do sol.
Divisa MG - SP - Depois de passar pelas cidades de Caxambu, Pouso Alto, Itanhandú e Passa Quatro cheguei na divisa dos estados de Minas Gerais e São Paulo, num local conhecido como Garganta do Embaú, onde se encontra a imagem de Nossa Senhora da Aparecida.
Após mais de um mês de viagem, pude avistar o Vale do Paraíba e me sentir em casa, pois além de estar no estado de São Paulo, tenho familiares em várias cidades da região. Desci a serra da Mantiqueira preocupado com o trânsito de caminhões e ônibus, e também com a velocidade que a bicicleta toma nessa serra tão íngreme, sendo necessário estar com os freios em bom estado. Felizmente tudo correu bem. Ao passar pela serra da Mantiqueira é possível notar a grande diferença entre a tranqüilidade das cidades turísticas do sul de Minas Gerias e o movimento acelerado das cidades industriais e poluídas do Vale do Paraíba. Dormi na casa da minha irmã na cidade de Guaratinguetá, que me esperou com um delicioso jantar. Enfim encontrei parte da minha família e já pude contar algumas histórias da minha aventura.
Serra do Quebra Cangalha - No dia seguinte parti bem cedo, pois o desafio agora era subir a Serra do Quebra-Cangalha para chegar à cidade de Cunha. Um dia de muito calor cuja subida dos 17 km de serra foi realizada sem pressa, procurando sempre me manter bem hidratado. Já no alto da serra, num dia maravilhoso de sol pude contemplar novamente o Vale do Paraíba só que agora com vista para a serra da Mantiqueira.
Cunha - Já em Cunha fui acolhido na casa de parentes que aguardavam ansiosos a minha chegada. Agora somente 41 km me separavam do término da minha aventura. Uma certa ansiedade tomava conta dos meus pensamentos e quase me tirava o sono.
Havia chovido no sábado à noite e o dia parecia ter uma temperatura mais amena. Ventava muito e eu queria chegar logo no alto da serra do Mar, bem na divisa dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Divisa SP - RJ - Depois de longas subidas, muita concentração e de uma parada numa cachoeira a beira da estrada, cheguei até a placa que indica a divisa dos estados. Foi um momento de muita emoção em que fiz uma rápida reflexão de toda a minha viagem. Lembrei-me da minha partida ainda em Diamantina até chegar ali, a poucos quilômetros do meu destino e louco para poder avistar o mar. Após tirar algumas fotografias do lugar, comecei a descida da serra no único trecho ainda em terra onde poucos carros conseguem passar. De início já senti o intenso calor e a umidade da serra do Mar e mais no final da tarde começou uma chuva fraca. Foi uma descida lenta, com muitas paradas para fotos e poder conversar com algumas pessoas na beira da estrada.
Chegada - Cheguei a Paraty por uma ciclovia que liga o bairro ao centro da cidade. E logo no começo fui recebido por um casal que pedalava pela ciclovia e que me acompanharam entusiasmados com a minha aventura. Se ofereceram para me hospedar em sua casa, mas gentilmente recusei o convite, pois queria descansar e refletir sobre minha aventura num momento só meu. Exatamente às 18h eu chegava com minha bicicleta no cais do porto de Paraty onde tirei uma fotografia da minha chegada quase no escuro. Estava um pouco cansado, mas emocionado com o que acabava de realizar.
Uma aventura feita com prazer... Percorri os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro completando um pouco mais de 1.000km pedalados entre Diamantina (MG) e Parati (RJ). Cruzei montanhas, riachos, arraiais, cidades e vilas. Conheci paisagens naturais, monumentos, obras de arte e registros históricos, estradas e trilhas. Descobri olhares e sorrisos na simplicidade e hospitalidade do povo mineiro, na receptividade e calor humano dos paulistas e cariocas. Mais rico que o metal amarelo e diamantes, essas são na verdade nossas maiores riquezas e que a coroa portuguesa não teve como levar do nosso país. Ao viajar pela Estrada Real, descobri também que viajei por uma "estrada de sonhos" cheia de emoções e desafios, e que está à espera de que outros aventureiros venham descobri-la também.
Números da Viagem
- 48 dias de viagem durante os meses de julho e agosto / 2004
- 42 localidades (cidades, distritos e Arrais) de Diamantina (MG) a Paraty (RJ)
- 3 Estados brasileiros: Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro
- 1 bicicleta Peugeot com câmbio de 27 marchas
- 1.021 km pedalados
- Nenhum pneu furado
- Média de 25kg de bagagem
- 3 palestras realizadas em escolas e universidades (Itambé do Mato Dentro, Prados e S. João Del Rei)
- 1 Câmara fotográfica Nikon FE
- 1 Câmara Digital 2.0 MP
- 1 Filmadora Digital Sony Mini-DV
- 1 Lata fotográfica (Câmara escura ou Pin-Hole)
- 300 fotografias em slides
- 570 fotografias com câmara digital
- 30 fotografias com a lata de alumínio
- 10 h de gravação c/ filmadora digital
DICAS |
EMPRESAS DE ÔNIBUS Partindo de São Paulo é possível ir direto até Diamantina em ônibus convencional. Se quiser um pouco mais de conforto e descansar com uma noite de sono existe a opção de ônibus leito até Belo Horizonte, depois é preciso tomar um ônibus convencional para Diamantina. Não esqueça de verificar os horários para não tomar um chá de cadeira na rodoviária de BH. O valor da passagem é referente aos meses de julho e agosto de 2004. EMPRESA GONTIJO - (11) 6221-3322 SP ó Diamantina - R$ 74,20 convencional SP ó BH - R$ 51,20 comum, R$ 90,20 leito EMPRESA PÁSSARO VERDE - (31) 3429-7500 - BH ó Diamantina - R$ 38,10 convencional EMPRESA REUNIDAS - Paraty ó SP - R$ 28,00 |
ONDE SE HOSPEDAR Uma boa recomendação para os cicloturistas é deixar reservada com antecedência alguma hospedagem em Diamantina, isso para não ficar rodando com a bike cheia de bagagens pelas subidas e descidas da cidade depois de uma viagem longa e cansativa, sem contar o tempo gasto para montar sua bike na rodoviária. Existem várias pousadas com muitas alternativas de preço ao longo da Estrada Real. As mais acessíveis variam entre R$ 10,00 e R$ 30,00 com café da manhã. Algumas pousadas são centenárias e valem a pena se hospedar nelas independente do preço. É o caso da Pousadas das Vertentes (32- 3363-1311) em Lagoa Dourada que tem 200 anos e a Sra. Aidê, a proprietária, é parente de Tiradentes. Nem por isso é cara, a diária custa em torno de R$ 20,00. Eu paguei R$ 10,00 e dormi no sótão. Entre Carrancas e Cruzília está a Fazenda Traituba com mais de 200 anos, foi construída para hospedar D. Pedro I. Para se hospedar é preciso telefonar com um dia antecedência para fazer a reserva. A diária completa custa em média R$ 45,00. Só o que o lugar representa para nossa história já vale a pena pela diária. Existe camping em algumas poucas localidades, mas com preços de uma pousada simples (R$10,00 - R$15,00). Em Ouro Preto o Albergue da Juventude (31 - 3551-2944 / www.brumasonline.hpg.ig.com.br ), pode ser uma boa opção.Na época a diária era de R$ 25,00 c/ café da manhã. |
ACESSO A INTERNET Em várias cidades encontrei meios de acessar a internet e disponibilizar o diário da minha página. Até mesmo Milho Verde uma localidade muito pequena tinha internet. Lan-houses, casas de informática, restaurantes, hotéis, prefeituras, casa de cultura, em cada localidade havia alguma dessas opções. Os preços variam muito, por isso nas localidades maiores vale a pena pesquisar, pois a diferença pode chegar a R$ 4,00 / hora de um lugar para outro. |
FONTES DE PESQUISA www.diamantina.com.br - site de Diamantina para consulta de pousadas, restaurantes, festividades. www.ouropreto.com.br - site de Ouro Preto. www.descubraminas.com.br -site sobre minas gerais onde é possível encontrar algumas planilhas. www.estradareal.org.br - portal do Instituto Estrada Real. www.antonioolinto.com.br - no site do Olinto é possível encontrar a altimetria de Ouro Preto - Paraty. www.waltermagalhaes.com - contém o diário de viagem, pousadas onde me hospedei e várias fotos. LIVROS Estradas Reais - Márcio Santos. De Volta à Estrada Real - Flávio Leão. |
MELHOR ÉPOCA Talvez o ideal seja as estações do outono e primavera, pois no verão é época de muita chuva e forte calor. Já no inverno é preciso estar bem preparado para o frio intenso, sobretudo à noite momento em que a temperatura cai muito. Há que se levar em conta o tipo de clima que a pessoa melhor se adapta. Fiz a Estrada Real no inverno, estava bem preparado e me adaptei bem ao frio. Vale procurar se informar sobre o calendário de festividades das localidades. |
LUGARES PARA VISITAR Em Diamantina visite a vila de Biribiri e vá conhecer um trecho da estrada real na saída da cidade. Em Conceição do Mato Dentro visite a cachoeira do Tabuleiro que é a 3a. maior do Brasil em queda livre com seus 273 metros. Imperdível! Fica no povoado de mesmo nome a 20km de Conceição.Se for fazer a caminhada até o poço da cachoeira, vale a pena contratar um guia para ir junto, pois eles conhecem os segredos da região e podem lhe contar várias histórias interessantes. Com a chuva o risco aumenta com a subida do nível do rio. Visite o Parque Municipal do Salão de Pedras, localizado a 3km do bairro Bandeirinhas em Conceição. Um complexo de pedras enormes localizadas no alto de uma colina formando um ambiente silencioso e contemplativo onde é possível avistar um belo visual do lugar. Como curiosidade, se passar por Morro do Pilar fique sabendo que nesta cidade localizada no centro da Serra do Cipó encontra-se a ruína da Real Fábrica de Ferro ou Fábrica do Rei, a primeira do Brasil a fabricar ferro gusa em alto forno. Também é possível visitar algumas Minas abandonadas onde centenas de escravos morreram na época da mineração. A quase 10km antes de chegar em Itambé do Mato Dentro, encontra-se a morada do Dominguinhos, um ermitão que vive em caverna, próxima a estrada, há várias décadas. Uma dica, não lhe ofereça nada como ajuda, pois ele detesta e pode vir a causar uma situação embaraçosa para o visitante. Informe-se na cidade sobre uma caverna no meio do mato com pinturas rupestres. Vá com um guia para não se perder. Em Ipoema, faça uma visita ao Museu do Tropeiro. Visite o Santuário do Caraça em Barão de Cocais. O Parque Estadual do Itacolomi, localizado em Ouro Preto é uma das atrações da cidade e que vale uma visitação para saber um pouco mais da nossa cultura e história. A visitação é monitorada. Para agendar vista e maiores informações: (31) 8835-7260 ou viste o site de Ouro Preto. Conheça Catas Altas, uma bucólica cidade bem aos pés da Serra do Caraça. A paisagem é linda! Atenção na Represa Camargo em Caquende, a balsa faz a travessia para Capela do Saco de hora em hora. O único bar-restaurante da Capela do Saco só funciona nos finais de semana. Em Paraty, no km 8 da estrada Cunha-Paraty, encontra-se o Centro de Informações Turísticas Caminho do Ouro, onde hoje existe uma espécie de sítio arqueológico através de um trecho da estrada real que está sendo revitalizada para visitações. As caminhadas são monitoradas por guias credenciados. Para maiores informações: (24) 3371-1783. |
RECOMENDAÇÕES O Instituto Estrada Real está fazendo um bom trabalho para sinalizar toda a Estrada Real. A intenção é colocar pequenos totens ao longo do percurso como é encontrado no Caminho de Santiago, na Espanha. Pude constatar existência de várias estacas entre algumas localidades que podem confirmar a realização desse trabalho. Mas enquanto esse trabalho não é concluído é bom tomar cuidado e estar bem informado para não se perder em algumas bifurcações existentes em algumas localidades. Conheci pessoas que se perderam e pedalaram desnecessários 30km. Protetor solar é indispensável em qualquer época do ano. Esteja bem abastecido com água para manter-se hidratado. No inverno algumas fontes de reabastecimento (regatos) secam. Em qualquer localidade procure respeitar a população local e seus costumes. Na Fazenda Traituba, recebi reclamações dos proprietários sobre um grupo de cicloturistas da região central do Brasil, que desrespeitaram o patrimônio histórico e as normas da fazenda. Tive um trabalho danado para mudar a má impressão. Lembre-se: depois de você também viajam outros companheiros cicloturistas e é importante deixar uma boa a impressão para não prejudicar os futuros viajantes. |
Esta expedição teve o apoio da Adventure Gears, Osiris Equipamentos, Bike Joe, Energy Sport, Revelapar, HB Sunglasses, Mad Signs e Studio Designer.
Walter Magalhães, Analista de Sistemas e Fotógrafo. Pratica o cicloturismo desde 1991, tendo pedalado mais de 6.000Km em viagens de bicicleta. Viajou pela França, Argentina, Chile, Espanha (incluindo o Caminho de Santiago de Compostela) e Estrada Real. www.waltermagalhaes.com |