Pedalando na Nova Zelândia
Depois de uma viagem de bicicleta pelo sertão mineiro, despertou-se em mim um grande interesse pelo cicloturismo. Resolvi então conciliar as minhas três atividades prediletas: fotografia, montanhismo e cicloturismo. Surgiu então a idéia de escolher um país em cada continente e percorrê-lo de bicicleta dando assim continuidade ao Projeto Paralelos. Para experimentar este trio e iniciar as pedaladas pelo mundo, escolhi um país que há muitos anos sonhava em visitar. Trata-se de um lugar paradisíaco com belas praias, montanhas nevadas, vulcões ativos e exóticas florestas com estranhos animais. Além disso, tem um povo muito hospitaleiro, que é famoso por respeitar a natureza e ser louco por aventura. Este lugar é o paraíso? Não, quase. É Aotearoa ou mais conhecido como, Nova Zelândia.
Vela - Cheguei ao país em plena America´s Cup. Esta competição é a copa do mundo da vela. Os kiwis, como são conhecidos os neozelandeses, eram os campeões e, portanto tinham o "mando de campo". A competição ocorria em Auckland que é considerada a capital mundial da vela. Auckland é também a maior cidade da Nova Zelândia, com mais de um milhão de habitantes. Apesar disto, guarda um ar aconchegante, pois a verticalização não é acentuada e a maioria das casas tem jardins sem muros!
Tombo - Depois de sofrer com o problema de fuso horário, o qual fez com que trocasse o dia pela noite e perdesse o apetite, resolvi desembalar a bike e começar minhas pedaladas. Escolhi fazer um circuito de 50km no entorno da cidade.
Sai pedalando, numa situação nova: a mão invertida. Logo no meu primeiro quilômetro, ainda sob efeito do fuso horário, da mão invertida e principalmente do azar, uma súbita porta de carro abriu-se.
Não tive tempo de frear. Chão e muita dor. O homem veio a meu socorro, porém estava tão assustado quanto eu. Meu cotovelo dobrou de tamanho em poucos segundos. Não acreditava no que estava acontecendo. Pensei que minha viagem terminaria por ai, pois parecia que tinha quebrado o braço. Fui para uma clínica, aonde me examinaram e fiz um raio - X. Por sorte não havia fratura. Gelo e anti-inflamatórios foi o que me restou.
Guia para cicloturistas - Adiei minha partida por dois dias. No quarto dia no país resolvi pegar a estrada. Tinha um bom guia, da série Lonely Planet, feito exclusivamente para cicloturistas. Nele encontravam-se vários roteiros. Escolhi então fazer um que consistia em contornar a península de Coromandel. Seriam cinco dias e cerca de 300km.
Respeito ao Meio Ambiente - O primeiro destino foi Thames, que outrora fora uma vila onde se explorava ouro e ainda guarda um pouco do clima de "velho oeste".
Ali aprendi minha primeira lição de como os kiwis respeitam o meio ambiente e sabem explorar economicamente as belezas que têm. Num lugar constituído por um mangue, construíram passarelas de madeira onde você encontra cabanas para observação de pássaros. Dentro delas, fotos e informações sobre todos os pássaros que podem ser avistados.
Infelizmente, ainda existe em nosso país a cultura de que o lugar que é o berçário da vida marinha, muitas vezes é apenas um pântano mal cheiroso, ótimo para ser aterrado e construir casas de praia ou fábricas.
Relevo Acentuado - Alguns quilômetros depois minha primeira surpresa: o relevo da ilha do norte não é tão suave quanto estava nos meus mapas. Tive que pedalar morro acima por mais de 10km até que cheguei a um belo mirante. De lá podia ver toda a baia de Thames e a pequena cidade de Coromandel bem a perder de vista. Desci animado, logo voltando a margear a baía. A maré estava muito baixa.
Amplitude de Marés - Na verdade, a Nova Zelândia é um dos locais em que podemos perceber as maiores amplitudes de maré. Muitas vezes vi barcos encalhados pela manhã e flutuando ao final do dia. Em Coromandel fiquei num albergue, de uma simpática neozelandesa que já havia rodado o mundo.
Você é Brasileiro? - Ao saber que era brasileiro, ficou a conversar. Logo na sala, almofadas feitas com sacos escritos "Café do Brasil" chamaram minha atenção.
Ela foi bastante agradável, tendo inclusive feito algo que não é comum:
- Você quer almoçar? Abra a geladeira e sirva-se à vontade! Comi como um rei: mariscos com salsicha e arroz. Esta era uma comida bem típica do local!
Belas Fotos - No fim da tarde escolhi pelo mapa um ponto ideal para fotografia. Como o litoral se posicionava para o oeste, o sol se punha no mar nesta região.
Pedalei mais 3km e cheguei à praia que lembrava muito as praias da estrada Rio-Santos. Pus-me a esperar o momento em que a mãe natureza iniciaria seu show. Então foi só clicar! Este momento mágico foi um dos poucos em que pude esperar a hora certa, no lugar certo para fotografar. Para se fazer belas fotos de paisagens e natureza, você precisa de tempo e sorte.
Tempo para observar, conhecer o lugar, ver os melhores ângulos e esperar o show começar. Sorte para que quando este show comece você esteja no lugar certo.
Por isso a maioria das belas fotos de paisagens são de fotógrafos que vivem no local ou que passaram um bom tempo por lá, de preferência as quatro estações.
Esta minha viagem solitária, de bicicleta, tinha como desvantagem o pouco tempo e a chegada a alguns lugares não nas melhores horas. Porém representava para mim um grande desafio: tinha que fazer o máximo durante aquela única tentativa que teria.
Fonte dos Desejos - Segui pedalando pela península até a paradisíaca Hahei. Caminhei durante uma hora até a Catedral Cave. Neste pedaço do paraíso o mar e a terra se encontram há milhões de anos e criaram maravilhosas esculturas. Nas pequenas estradas em que pedalava deparei-me com algo que só acreditaria ao ver. Alguns amigos, que já estiveram na Nova Zelândia, me contavam, mas como São Tomé, só acreditei no dia em que vi com meus próprios olhos. Defronte das pequenas propriedades rurais estavam bancas com frutas. Estas estavam dentro de sacos, contadas e com o preço. Ao lado um vidro de maionese cheio de moedas. Simplesmente você escolhia e depositava o valor. Entretanto ninguém estava tomando conta!
Paixões Nacionais - Nesta região passei por diversas reservas. Numa delas pude aprender um pouco mais sobre a ave símbolo do país: o kiwi.
Entrei numa agradável floresta subtropical com direito a samambaias gigantes. Sabia que seria improvável avistar um deles, pois além de raros são animais de hábitos noturnos.
Ainda estão ameaçados de extinção em conseqüência dos desmatamentos praticados nos séculos passados e da introdução de predadores (principalmente cães e gatos) em seu delicado ecossistema. Os neozelandeses lutam não só para salvar esta espécie como várias outras que existem no país.
Durante esta viagem percebi que são pessoas muito amáveis, abertas e sempre dispostas a fazer novos amigos. Cultuam a natureza e o bem-estar.
Prova disto é o hábito que têm de sentar-se numa varanda para tomar um dos bons vinhos locais e deliciar-se com uma frugal refeição composta de frutas, peixes e carneiro. Praticam esportes de natureza com intensidade.
Montanhismo e vela são as paixões nacionais (não posso esquecer do rúgbi). O maior ídolo nacional é Sir Edmund Hillary, um apicultor que há 50 anos foi o primeiro homem a um alcançar o cume do Everest.
Trânsito - Abandonei as pacatas e belas praias e estradas da Península de Coromandel e segui até a cidade de Tauranga. Confesso que foi um pouco estressante, pois já havia me desacostumado com o trânsito. Foram 80km bastante duros até chegar a Tauranga no fim do dia. A partir daí, segui para o interior da ilha do norte para uma região chamada de "Central Plateau". Esta é conhecida por seus belos vulcões e ser um dos lugares aonde se é possível encontrar expressões da cultura maori.
Paleta do Pintor - A pedalada no platô central começou de forma bastante agradável. Passei repetidamente por plantações de kiwis e maçãs.
Ganhava altitude de maneira gradual. A vegetação de mata subtropical passou para campos. No caminho podia visualizar belas corredeiras sendo que algumas são conhecidas como as melhores para a prática do rafting (alcançam nível 5).
Esta região também é conhecida por seus lagos interiores de origem vulcânica sendo que o maior lago da Nova Zelândia, o Taupo seria um dos meus próximos destinos.
Cheguei então a Rotorua, uma cidade bastante turística. Há um passeio que é imperdível. É a visita a uma reserva particular que é composta por belas formações vulcânicas como lagos de cores intensas e variadas sendo mais famoso a "Paleta do Pintor".
Neste você pode delirar com as várias cores vibrantes de verde, amarelo e alaranjado. A explicação para isto provém dos os diferentes minerais contidos principalmente em derivados de estanho e enxofre.
No fim do passeio você tem a oportunidade de assistir com hora marcada à apresentação do maior gêiser do país.
Vento Contra - Depois dessa parte bastante turística segui percorrendo um trecho extraordinário. Foram quase 100 quilômetros numa área quase desértica com fortes ventos soprando contra mim constantemente, fazendo com que tivesse que pedalar inclusive nas descidas. Coisa inacreditável! No meio do caminho resolvi desviar da rota e passar por uma pequena vila denominada Reparoa. O legal é que eu era o único turista por lá e é claro que com minha colorida bicicleta tornei-me atração. Logo algumas pessoas vieram falar comigo.
Etnias - Havia duas crianças que sintetizavam as etnias principais da Nova Zelândia: um era o típico descendente de ingleses e o outro de maoris. Acabei almoçando no restaurante da mãe de um deles onde pude me deliciar com o típico e simples "Fish n`fries" (peixe frito com batatas).
Depois de visitar o impressionante límpido banheiro público de Reparoa e de dar uma passada na escola dos meninos onde deixei o meu endereço eletrônico e um pouco do material sobre o Brasil que carregava comigo, segui adiante.
Energia dos Vulcões - Depois de 15km avistei um monstro. Na verdade era a torre de uma grande usina geotérmica que gera energia a partir do calor dos vulcões. A Nova Zelândia é um país que se orgulha de ter banido as usinas nucleares e os transgênicos.Tem uma matriz de energia composta de hidrelétricas e termelétricas, num país onde não há reservas de petróleo e sua economia se se baseia na agricultura de alta tecnologia.
Produzem frutas, laticínios e ovelhas! O número de ovelhas no país é dez vezes maior que o da população humana. Em regiões por onde passei havia fazendas de ovelhas onde era quase impossível se contar o número de cabeças. A outra importante fonte de renda do país é o ecoturismo que tem ali sua "Meca".
Transe - Em Taupo acordei com um belo nascer do sol às margens do lago do mesmo nome. A cidade é famosa por ter o maior bungee jump da ilha do norte. Decidi pedalar cedo em direção a cidade de Turangi distante cerca de 40km.
A bela estrada que contorna o lago serviu de inspiração para muitas fotos. Estava realmente numa espécie de transe. Parei às margens do lago e deliciei-me com os pequenos veleiros que singravam o forte vento naquele lago.
Cheguei a Turangi, que, não sei por que, despertou em mim uma grande empatia. Resolvi que ficaria por ali dois ou três dias, descansando, lavando minhas roupas e realmente entrando no espírito da cidade.
Tradição - Desta cidade partem as excursões para o Parque Nacional de Tongariro, famoso por seus vulcões e lagos cor de esmeraldas e por ter a "melhor caminhada de um dia" do país.
Retornando do albergue depois de umas compras passei em frente a uma verdadeira "marae" que é o templo maori. Fui dar uma de curioso e acabei sendo convidado para participar da cerimônia. Ali sim estava diante de algo autêntico. Os cantos e a dança lembravam a que vi numa festa em Rotorua. Porém as sensações eram mais fortes. O auge foi quando fizeram o cumprimento típico chamado hongi no qual aproximam-se as frontes e os narizes e respira-se próximo ao outro, compartilhando o "sopro divino", nossa essência.
Vulcão Ativo - A famosa caminhada no Parque Tongariro tem nível um pouco difícil com aproximadamente 22km. Leva-se cerca de sete horas para percorrê-la. Saí de uma altitude de 900m e atingi quase 2.000m. No caminho abandona-se uma região de campos até chegarmos próximo a cratera do vulcão onde se tem uma bela vista do elevado vulcão Ruapehu, de lagos cor de esmeralda e da Red Crater com sua formação rochosa lembrando uma língua.
Na verdade, são todos vulcões ativos, sendo que podemos ver fumaça saindo das crateras. O vento era tão forte que da cratera tinha dificuldades para me manter de pé e fotografar.
Na descida mais uma surpresa: passaram por mim três atletas correndo como se estivessem num campo. A inclinação deste lugar era absurda!
Entendi porque os kiwis dominam as corridas de aventura. Treinam não só nas cidades, nas estradas, mas também em locais difíceis como este aonde um vulcão com suas pedras soltas e relevo bastante íngreme.
De Caiaque no Porto - Iniciei o último trecho de pedaladas na ilha do norte até a cidade do National Park. Um trecho com muitas subidas sendo uma prova de fogo. A partir dali as estradas se tornavam movimentadas e todos sugeriram que pegasse um ônibus até a capital Wellington.
Cheguei em Wellington e tirei um tempo para conhecê-la. No centro cívico pude ver uma feira de esculturas.
lém da orquestra com músicas clássica que estava próxima ao porto, encontrei uma agradável surpresa: a emocionante apresentação de gaita de fole. Em frente ao porto pude fazer algo impensável: andar de caiaque no porto de uma cidade aproximadamente 300.000 habitantes!
Ilha do Sul - Atravessei de barco para a ilha do sul. Meu primeiro destino foi a cidade de Nelson. O dono do albergue em que fiquei é um montanhista e amante da natureza. Passou muitas dicas sendo a principal: você tem que descer a costa oeste.
Lá me senti em casa. Numa agradável sala com muitos CDs de músicas do mundo, ou numa cozinha onde havia ervas plantadas em vasos para você escolher o melhor tempero para sua refeição. Detalhes que faziam este lugar muito especial.
Porém o principal presente: Estava em dúvida se desceria pela costa oeste ou pela costa leste da ilha do sul. Alan me contou das maravilhas da costa oeste, como era selvagem e também como é imprevisível seu clima.
Decisão - Amante das montanhas e profundo conhecedor do clima local ele me chamou ao seu computador e abriu um site de meteorologia da Austrália e da Nova Zelândia.
Disse que na próxima semana, ou melhor, nos próximos dez dias haveria tempo bom na região. Sugeriu que partisse o quanto antes para não perder um só dia, pois o clima por ali é impiedoso. Passei a noite pensando e resolvi que seguiria seus conselhos.
Planejei minha viagem pela costa oeste, o que na verdade era minha vontade apesar de que meu livro-guia não aconselhar. Este sugeria que não pedalasse na costa oeste no rumo Norte-Sul e sim nos rumos Sul-Norte por causa dos ventos constantes e fortes. Ainda assim resolvi tentar, ou melhor, teimar. Canoagem Oceânica - Segui então para o Parque Nacional Abel Tasman, distante 90km dali. O caminho era agradável. Passei várias vinícolas. Próximo à entrada do parque, estava uma operadora local que era responsável pelos passeios que desejava: remar no oceano por 20km e depois regressar caminhando por dentro do parque.
Adorei a experiência de canoagem oceânica. É um esporte que está para o "mar" assim como o cicloturismo está para a "terra". Você adquire um ritmo constante, forte, com grande contato físico com a natureza e belas surpresas, como aves e outros animais marinhos que podem passar bem a seu lado ou mesmo te acompanhar. Desfrutei do silêncio, do vento, de cada remada Na volta uma agradável caminhada por dentro de uma mata.
Do parque segui em direção à cidade de Murchison. Depois de subir a parte mais setentrional dos Alpes do Sul, cheguei a um belo vale que é parte do Parque Nacional de Nelson Lakes. Surpreendente! Um rio com sua água de cor esverdeada e cristalina, descendo abruptamente até a costa oeste. Lá fui eu e minha bike morro abaixo!
Focas -Na costa logo, cheguei a cidadã de Westport. Descansei no centro de informações e logo segui rumo a famoso local que tem um dos ventos mais fortes e constantes do país: Cape Foulwind.
Cheguei a uma magnífica praia deserta, com mais de 10km de extensão, onde havia apenas um trailler e no final uma colônia de focas. Fui tentar avistá-las do alto de um penhasco. A distância era muito grande. Eram por volta de três da tarde e elas estavam esparramadas nas rochas tomando um banho de sol após uma refeição.
Riscos -Dali continuei pedalando rumo sul, na rodovia que corta a famosa "Wetland", (trocadilho de Westland). No trecho entre Westport e Pankake Rocks, pude sentir na pele porque todos os guias e muitas pessoas alertaram-me para não seguir no rumo norte-sul. Os fortes ventos e a umidade proveniente da Antártica castigam esta região incessantemente. Junto a isso estava um relevo muito acidentado, que tornava pedalar nesta região, um grande castigo. Na verdade, um desafio que requer planejamento, bons equipamentos e preparo físico. Enfrentei riscos reais como hipotermia e acidentes.
Por quê? - No fundo acho que buscava um pouco de tudo isto. Confesso que algumas vezes, quando o vento quase me jogava para fora da estrada e a chuva molhava até minhas cuecas, questionava-me porque estava fazendo aquilo. Porém no fim do dia, quando estive numa barraca quentinha ou fazendo um delicioso jantar, compreendia o porquê daquilo tudo.
Assim como nas montanhas que já subira e conquistara (ou pelos menos tentara), a aparente explicação de um porquê parece muito vazia. Melhor seria tentar compreender o como e principalmente o para quê. No budismo, o importante não é chegar a algum lugar ou fazer alguma coisa, mas sim o caminho que você toma ou a forma pela qual faz.
Panquecas - Depois de um longo trecho subindo e descendo falésias numa linda costa, cheguei ao ponto mais visitado do Parque Nacional de Paparoa. As formações rochosas denominadas Pankake Rocks, são uma atração imperdível. A natureza esculpiu a rocha de maneira que aparentam estar empilhadas, assim como num monte de panquecas. Além disso, o mar escavou grotas nas quais ao bater produz um intenso som surdo que ao mesmo tempo é hipnótico. Seguindo mais ao sul, passei por uma bela região de planícies até a cidade de Greymouth. Continuei seguindo pela costa, agora com bom tempo e por uma região de relevo suave, entrecortada por vários lagos.
Região dos Glaciares - Então alcancei uma das regiões mais belas do mundo. Trata-se de glaciares, os quais são raros.
Apenas ali e na Patagônia Chilena, é possível encontrar tais formações numa altitude baixa, tão próxima do mar e cercada de florestas. Para se ter uma idéia, ali você pode de manhã surfar numa praia, depois pedalar 8km e escalar uma parede de gelo à tarde. Nada mal! Pedalava em direção à encantadora Franz Josef, uma típica vila alpina. No caminho presenciei o mais belo momento que tive em toda viagem.
Um entardecer com a vista de montanhas nevadas ao fundo e uma aconchegante casa de campo com seu jardim cadeiras vazias sob a sombra de uma arvore, que convidava para desfrutar, com certeza, do paraíso! Em Franz Josef segui pedalando até a base do glaciar, distante 3km da cidade. Uma mistura mágica de floresta subtropical verdejante e um glaciar branco acinzentado, despencando abruptamente, compõem este cenário. Um vento frio "encanado" produzia uma sensação térmica "polar".
Isolamento - Acabei seguindo mais para o sul, para a parte mais isolada que pedalei. Tratava-se do Parque Nacional de Westand. Na verdade ele se inicia em Franz Josef e vai quase até o encontro do outro grande parque da ilha chamado de Fiordland.
Está região na qual pedalava é muito pouco visitada. Primeiro porque não tem quase cidades, depois porque chove todo os dias!
E terceiro porque descobri ali o animal mais perigoso de toda nova Zelândia: borrachudos! Para se ter idéia, bastou um descuido de um minuto ao deixar minha barraca aberta, para que conseguisse a desagradável companhia de uma centena de borrachudos sedentos por sangue!
Foi um período de isolamento, ou melhor, de solitude quase perfeito. Neste trecho de mais de 200km, encontrei pessoas apenas nos campings e raramente nas estradas. A vívida floresta tinha um cheiro de almiscarado inesquecível.
Só mesmo de bike para se ter todos os sentidos contemplados e saturados por cores, formas, cheiros e sons. Um dos melhores acampamentos foi às margens do lago Paringa.
De lá o relevo mudou e comecei a encontrar falésias como as da região de Westport. Nem preciso dizer que voltei a "urrar" na minha bike!
Respeito - Cheguei a Haast. Ao atravessar o belo rio do mesmo nome, de cor azul turquesa, senti-me muito importante. Havia uma ponte de mão única, como várias outras que atravessei, porém com quase 200m de extensão.
Enquanto tranqüilamente cruzava-a, um grande caminhão aguardava do outro lado, sem me molestar. Quando terminei as pessoas me saudavam.
Como respeitam o cicloturismo neste país! Haast marca a transição entre Westland e Fiordland. É de lá que seguiria para o famoso Haast Pass, a última passagem nos Alpes do Sul.
4km/h - Estava margeando o rio Haast, num trecho que lembrava um sonho. Este de cor azul com belas montanhas nevadas ao redor. Parei num belo local denominado Pleasant Flat.
O livro-guia apontava como o último lugar para descanso antes da ascensão. Lá fui eu em direção ao grande teste. Assim que cruzei para a margem esquerda o vale abruptamente se estreitou de alguns quilômetros para poucas centenas de metros.
A inclinação era absurda. A velocidade que desenvolvia era de 4km/h (a mesma se caminhasse!) Para se ter uma idéia a média que vinha desenvolvendo antes era de 15km/h.
Pedalada depois de pedalada fui galgando os Alpes do Sul. Parei numa bela cachoeira para descansar. Depois de três horas alcancei um platô, em que a inclinação era menor. Mantive agora o rumo leste. FELIZ DA VIDA!
A sensação de superar limites é uma das melhores que conheço. A alma fica lavada, a mente extasiada e o corpo desfruta de uma overdose de endorfinas! A vegetação mudava abruptamente. Deixava de ser florestas subtropicais para transformar-se em campos.
Passeio de Barco - Cheguei por volta das 16 horas à vila de Makarora. No outro dia procurei a empresa responsável por um passeio denominado Siberian Experience. Trata-se de um sobrevôo de monomotor pelos Alpes do Sul, seguido de uma breve caminhada e finalmente a descida em jet boats, que são lanchas que atingem uma alta velocidade e realizam manobras pelo leito de um rio. Apesar do bom tempo, naquele dia faltavam clientes para o programa. Restou-me apenas fazer o trecho de barco, pois para este haviam seis interessados. O "rolê" foi emocionante. Além dos "cavalinhos de pau" dados pelo o barco, o vale do rio é um lugar de indescritível beleza.
Companhia - Na manhã seguinte parti para a cidade de Wanaka. O trecho que percorreria seria um dos mais longos: 110km, numa região das mais incríveis. Antes de voltar a pedalar reencontrei o casal de suíços que estavam no Haast Pass. Eles pararam para fotografar a instalação e acabamos conversando por alguns minutos.
Convidaram-me a pedalar junto com eles. Pela primeira vez nesta viagem, pedalava em companhia de outras pessoas. Confesso que foi bom, pois já me sentia um pouco entediado. Além disso, percebi que em grupo seu ritmo é maior, pois sempre tem alguém liderando e puxando as pedaladas.
Iniciamos pedalando na margem esquerda do lago Wanaka. Depois começamos um trecho bem íngreme, no qual cruzamos um divisor de águas e então avistávamos a margem direita do belo lago Hawea. Este com profundidades de até 400m tem um azul intenso e cheio de peixes que o tornam muito visitado. Do alto de um mirante pudemos contemplar toda sua beleza.
A partir dali descemos por quase 7km! Ali alcancei a maior velocidade da viagem: 70km/h. A adrenalina subiu, pois sabia que se caísse não seria muito agradável. Ao fim do dia chegávamos a encantadora Wanaka. Este foi o melhor trecho que pedalei. Talvez pela beleza, pela boa companhia e pela longas subidas e descidas.
Seis Meses na Fila - Ao contrário da movimentada Queestown, Wanaka guarda um charme e ar de interior muito próprios. Escolhi uma das belas caminhadas de um dia na região. Para isto fui ao escritório local do Departamento de Conservação (DOC), um dos vários espalhados pelo país.
Este órgão é o responsável pelos Parques Nacionais. Escolhi a caminhada de Rob Roy, na qual poderia chegar bem próximo à geleira do mesmo nome. Além disso, tentei fazer ali uma reserva para a caminhada de Routeburn.
Esta é umas das "grandes caminhadas" do país. Para se ter uma idéia de como são freqüentadas estas trilhas, para se percorrer a trilha de Milford, a mais famosa, você tem que reservar com quase seis meses de antecedência!
Como percorreria a Routeburn daqui a cinco dias, consegui apenas a permissão para ficar em um dos seus três refúgios, pois os demais estavam cheios.
Finalmente o Glaciar - Cheguei a portaria do Parque Nacional Mount Aspiring para iniciar a trilha de Rob Roy. Gostaria de ter tido recursos para tentar ascender o Mount Aspiring. Esta magnífica montanha, com seu cume de forma piramidal, é considerada o maior desafio da Nova Zelândia.
Ao ver alguns montanhistas passando a meu lado, cheio de equipamentos de ascensão, me deu uma vontade de seguí-los. Porém eu estava apenas com minha pequena mochila de ataque, um lanche e meu equipamento fotográfico, além da minha "magrela" parada no estacionamento do parque. Logo no início da trilha tive que atravessar uma ponte pênsil que apesar de muito bem feita, dá um friozinho na barriga. Abaixo um bravio rio de corredeiras. A seguir a trilha adentrou por uma mata. No momento estava chovendo o que tornava aquela caminhada um pouco desconfortável. Depois de subir um desnível de cerca de 700 metros contornando as encostas, chega-se a um vale de onde uma bela visão extasiou-me. Uma cachoeira com mais de 300 metros despencava do glaciar.
Depois de percorrer mais alguns quilômetros neste vale, seguindo um riacho, atingi um platô. Dali o espetáculo das geleiras foi memorável. De repente um grande estrondo, e uma massa de blocos de gelo despencou de mais de 800 metros, logo se tornando uma queda d'água. Assentei-me numas rochas onde também estavam alguns poucos turistas.
Companheiras inteligentes - No meio de delicadas flores amarelas, começaram a surgir ao meu redor algumas interessantes criaturas. Eram keas, a única espécie de papagaio a viver num clima subalpino. Na verdade, estas aves, segundo me disse uma bióloga no zôo de Wellington, são tidas como uma das mais inteligentes. Foram perseguidas pelos primeiros colonizadores, que acreditavam tratar de aves de rapina que matavam ovelhas.
Na verdade foram acusadas injustamente. Estes animais têm a penagem de cor amarronzada e a parte interna das asas de um vermelho intenso. Chegavam bem perto de mim, em busca de farelos de biscoitos. Delirei com a aproximação destes raros animais. Fiquei mais de uma hora desfrutando daquele belo cenário em companhia das keas. Restavam alguns dias, pois estava inscrito num curso de resgate em montanha na cidade de Invercargill, a mais ao sul do país, para dali a uma semana. Então peguei uma van de Wanaka para Queenstown, distante cerca de 80km, passando por uma sinuosa e íngreme estrada.
Torre de Babel - Queenstown é a cidade mais visitada na ilha do sul. Famosa por ser destino de todos aqueles que buscam esportes radicais.
A cidade também é invadida por turistas convencionais. É uma babel, com bons hotéis, pousadas e restaurantes. Além disso, suas coloridas ruas e agitada noite são um convite a parte.
Numa volta pela cidade visitei um aquário, que na verdade é uma construção situada a três metros de profundidade do lago Wakatipu.
Depois subi de teleférico até um mirante. Neste local você tem uma bela vista da cadeia de montanhas denominada The Remarkables.
Estas belas montanhas são um capricho da natureza. Têm a peculiaridade de serem uma das poucas no mundo que estão alinhadas no sentido norte-sul, funcionando como agulhas de uma bússola.
Portanto no lado ocidental que é avistado de onde estava seria possível presenciar um belo por do sol.
Deixei minha bike em Queestown e fui de ônibus até o famoso Milford Sound. O ônibus parte bem cedo de Queenstown, chegando a Milford por volta das 12 horas A estrada que liga a vila de Te Anau até o fiorde é chamada de Milford Road. São cerca de 100km dentro do parque com paisagens únicas.
Vales verdejantes com montanhas nevadas ao fundo, cachoeiras e muito mais. No final o ônibus entra num túnel com cerca 6km morro abaixo, escavado na rocha e no qual só passa um ônibus de cada vez. Alucinante!
Maravilha da Natureza - Cheguei a uma espécie de porto onde entrei no barco e segui para o Milford Sound. Que lugar incrível! Nenhuma palavra que escrever neste texto poderá descrever a beleza e imponência deste lugar. Montanhas de quase 2000m despencam até o mar, formando gigantescas paredes dos dois lados.
Cachoeiras com mais de 700 metros encantam, sendo que suas águas dissipam-se antes de atingir o mar. Na volta avistei uma colônia de leões marinhos e bem ao fundo pudemos ver alguns golfinhos saltando e acompanhando um outro barco. Realmente este lugar é uma das grandes maravilhas da natureza. Não é à toa que é tão visitado.
Refúgio - Na volta de Milford, o ônibus me deixou na estrada, no início da trilha de Routeburn. Segui a partir dali ate o refúgio onde passaria a noite.
Parti de uma altitude de 900m e depois de duas horas já estava quase a 1400m. Ao fim da tarde cheguei ao refúgio.
Este era freqüentado por pessoas muito interessantes, na verdade, algumas das mais simpáticas que encontrei. É um pouco complicado explicar, mas sentia-me na minha própria tribo!
Neste grupo chamou minha atenção duas senhoras neozelandesas de meia idade que junto à bela e simpática filha de uma delas, estavam fazendo caminhadas pela região. Explicavam que em todas as férias ou feriados, praticavam caminhadas.
O Senhor dos Anéis - Na manhã seguinte, fui ao Key Summit. Neste lugar me senti um personagem de "O Senhor dos Anéis".
No topo desta pequena montanha, está uma vegetação endêmica, com pequenos arbustos e alagadiços. As intensas chuvas formam pequenos lagos que refletem a imagem dos cumes das altas montanhas ao redor.
Segui em direção ao lago Mackenzie. Foram 4 horas de caminhada num ritmo forte e constante. O caminho que seguia, constituía-se de uma trilha única e bem conservada, a qual é constantemente compactada e onde são realizadas pequenas contenções, a fim de evitar a erosão e a abertura de uma nova cicatriz neste imaculado lugar.
No caminho passei bem ao lado de uma cachoeira com quase 100m de altura. É impossível não se molhar nesta trilha. Por volta das 14 horas cheguei ao lago Mackenzie.
Este lugar idílico fora escolhido por mim como o ápice da viagem. Um objetivo concreto, que fez com que pedalasse todo os dias sob sol, chuva e ventos para atingi-lo. Era como se fosse o cume da uma montanha que escolhi para subir.
Ovelhas - Retornei a Queenstown, agora com destino ao extremo sul da ilha, mais precisamente a cidade de Invercargill. Seria meu último trecho de pedaladas. Pedalei por mais dois dias por uma região bem diferente.
Na verdade deixei uma área montanhosa e segui para Southland, a região onde estão as maiores fazendas de ovelhas.
No caminho encantava-me com os montes de feno e aveia, de cor dourada que descansavam nos campos. Já estavam a preparar o suprimento para o inverno que não tardaria a chegar.
Destino Final - Depois de 130km cheguei ao meu destino. Estava feliz por ter percorrido o país de norte a sul em minha bicicleta, conhecendo sua beleza natural, seu povo e tendo feito muitos novos amigos.
Chegando a Invercargill, fui procurar o casal Duston. Sally é a coordenadora do NZMSC (Conselho de segurança em montanhismo da Nova Zelândia) na região.
Esta organização é responsável por inúmeras atividades como cursos e também a normatização da prática do montanhismo no país.
Conversamos muito sobre esta iniciativa, que acho ser uma grande necessidade no Brasil, onde muitos que fazem um pequeno curso fim de semana, logo depois se tornam "instrutores" de escalada ou montanhismo.
Estava ali para participar de um curso de resgate em montanhas. Depois de dois dias, eu e os Gordon nos tornamos grandes amigos. Eles foram muito gentis e se dispuseram a me levar no fim de semana para conhecer as belezas de uma região chamada Catlins Coast, uma das mais selvagens do país.
Perto de Invercargill está o Slope Point, o ponto mais ao sul da Nova Zelândia. De lá é mais perto alcançar o pólo sul do que a linha do Equador. A latitude de 46 graus sul foi um marco importante que alcancei.
Leões Marinhos - Então partimos em nossa viagem. A primeira parada foi numa praia onde havia uma colônia de leões marinhos. Apesar do risco de me aproximar deles, não resisti. Vi que o vento soprava do mar para a terra e então não me preocupei.
Cheguei a apenas 6 metros de um grande macho que por ali descansava. O cheiro destes animais é muito forte e o tamanho deste grande macho impressionava. Desta praia seguimos até Curio Bay onde existe uma floresta petrificada.
Pingüins - Neste lugar acabamos nos deparando com um dos mais raros pingüins do mundo: o pingüim de olhos amarelos.
Segundo Gordon, só existem cerca de 2000 indivíduos desta espécie. Emocionante! Seguimos rumo leste agora dentro de uma área de reserva na qual vivem maoris.
Logo chegamos a uma linda praia deserta com mais de 20km de extensão. Nossa última parada foi num local de extrema beleza chamado Nugget Point.
Lá, além de um lindo farol situado na beira de um penhasco, estão algumas formações rochosas que lembram os "12 apóstolos" da costa australiana. No fim me levaram ao museu de Invercargill.
Lá pude ver e fotografar ao vivo, o raríssimo Tuatara. Um fóssil vivo, único representante de toda uma classe de répteis.
Uma das interessantes características deles, é que, enquanto jovens têm no topo da cabeça, sua glândula pineal exposta diretamente à luz, o que parece ser um terceiro olho. Por isso são cultuados pelos nativos. Deixei meus novos amigos com pesar. Prometemos nos reencontrar, já que eles desejam muito conhecer o Brasil.
Burocracia - Segui de ônibus para Christchurch. Lá tentei resolver um problema: Meu visto para a Austrália.
Como queria chegar a Bali, teria que passar pela Austrália. Para isso tinha que obter um visto.
Porém, a "burrocracia" é igual em todo mundo. Deram-me apenas um visto de ida. Não poderia passar pela Austrália na volta, a menos que fosse à Jacarta, capital da Indonésia, para tentar conseguir o visto de volta. Isso era demais. Fiquei chateado e um pouco decepcionado. Porém também, como acredito que nada ocorre por acaso, resolvi aceitar e deixar Bali para uma outra vez. Voltei de avião para Auckland.
Último Dia - No meu último dia no país, fui ao Memorial Museum visitar a exposição comemorativa dos 50 anos da conquista do Everest.
Foi emocionante ver como aqueles homens enfrentaram as maiores dificuldades e utilizaram da pouca tecnologia existente para conseguir tal proeza.
Para se ter uma idéia disto, o par de botas que usaram pesava mias de dois quilogramas! Estes sim foram verdadeiros heróis. Além disto, Sir Edmund Hillary, após ter se tornado mundialmente famoso, não esqueceu daqueles que o ajudaram: os Sherpas. Desde então passou a conseguir recursos e a construir escolas e postos médicos para aquelas comunidades. Talvez por isso este homem é tão venerado em seu país. Além de ser um explorador, tornou-se um benfeitor.
Deixei este museu em direção ao aeroporto com uma sensação incrível. Na minha bagagem estavam 1300 surpreendentes quilômetros percorridos na minha bicicleta, 200km das mais belas trilhas do mundo, inúmeras horas de boa conversa e de maravilhosa cultura e é claro, um punhado de novos amigos e lindas fotos. Não precisava de mais nada! Meu sonho se tornara realidade. Restava agora o mais importante de tudo: voltar para casa!
Esta ciclovia corta toda bela e agradável cidade de Christchurch
Paulo Magno do Bem Filho, Médico, mergulhador de resgate, já participou de inúmeras expedições: Amazônia e Monte Roraima, Pantanal, Vale do Peruaçu, Aconcágua, etc. Percorreu a pé o interior de Minas Gerais como médico das Expedições Spix&Martius e Estrada Real. Planejou e participou das 4 etapas do Projeto Paralelos: Ascensão de Vulcões no Equador, Trekking na Patagônia e Cicloturismo no sertão de Minas Gerais. Em sua última viagem percorreu 1300m de bicicleta na Nova Zelândia.. |