Desembarcamos no Aeroporto de Malpensa Milão em 02 de junho de 2008. Apesar de já ter estado ali outras vezes, para mim um novo universo estava se abrindo: dessa vez tinha trazido a bike! Não dependia mais de ônibus ou trens para sair dali.
No próprio aeroporto já montamos as bikes e começamos a pedir informação do melhor caminho a seguir, nosso primeiro destino era a cidade de Vigevano, cerca de 50 km a sudoeste do Aeroporto. Já sabíamos que saindo dali cairíamos direto na autopista, provavelmente proibida para bicicletas e lotada de carros. Perguntamos para guardas, guias de turismo e motoristas, para todos eles o único e lógico caminho seria a autopista mesmo. Até os mapas que conseguimos só mostravam essa alternativa. Claro, são feitos para quem vai de carro...
Decidimos seguir e tentar encontrar o caminho por nós mesmos. Além da experiência do Olinto, contávamos com o meu italiano paulistano e não seria difícil se fazer entender pelo caminho. Saímos do aeroporto e já demos de cara com a rotatória para a autopista. Na mesma rotatória havia uma saída que seguia para uma pequena vila, bem ao lado do aeroporto. Seguindo por ali logo encontramos um rapaz de bike e fomos direto pedir informação.
Enzo foi categórico: é só seguir pelos canais do Rio Ticino!. Como era um dia de feriado, ele estava passeando por ali e resolveu nos acompanhar, indicando o caminho até os canais. Como quase tudo na Itália, esses canais também tem uma história, que Enzo nos contou enquanto pedalávamos: estes canais foram reformados por Leonardo da Vinci para transportar os mármores para a construção da Catedral de Milão. Pedalamos um pouco juntos pelo canal principal, e então Enzo se despediu de nós, já estava na hora dele voltar para casa. Seguimos pelo canal observando o movimento suave das águas pelo seu leito, e comecei a pensar sobre a história desse lugar.
Os canais do Rio Ticino foram abertos no século XII para transportar água, irrigar e abastecer as pequenas vilas da região de Milão. O curso artificial mudou de nome várias vezes e hoje é chamado de Naviglio Grande. Em 1272, cem anos mais tarde, os canais foram ampliados e aprofundados para permitir a navegação; a partir de então passaram a ter importância fundamental no transporte de mercadorias entre o Lago Maggiore e a cidade de Milão, sendo considerados os primeiros canais navegáveis do mundo moderno. No século XVIII o transporte de passageiros pelos canais passou a ser regular e freqüente.
Leonardo da Vinci chegou em Milão no final do séc XV, numa época de grandes realizações hidráulicas.
Apesar dele não ter sido o inventor das eclusas, aperfeiçoou o sistema existente. Eclusa, vulgarmente conhecida como elevador de navio, é um sistema utilizado para vencer um desnível de água, tanto para subir ou descer um rio ou canal.
Até então, no sistema utilizado, quando se abriam as comportas para a passagem da água esta vinha com grande pressão e quase caía para dentro dos barcos. Com a engenhosidade que lhe era peculiar, Leonardo criou o portão inferior. Através desse portão é que a água entra e sai, fazendo subir ou baixar o nível, controlando o ímpeto das águas. Esse sistema foi utilizado na ligação entre o Naviglio Grande e o canal que conduzia os mármores até o canteiro de obras da Catedral de Milão.
O interessante é que o mármore não pertencia à tradição arquitetônica milanesa, que utilizava o tijolo. A possibilidade de transportar o material por via fluvial e pelos canais é que viabilizou a utilização do mármore da Cava de Candoglia, Comuna de Mergozzo, reduzindo drasticamente as despesas com transporte. Os blocos eram carregados com carro de boi até o rio Ticino, e depois pelo Naviglio Grande até a Porta Ticinese em Milão, percorrendo mais de 100 km em via fluvial. De lá foi construído um canal de ligação até o canteiro de obras, onde o mármore era descarregado. A utilização do mármore condicionou não só a arquitetura da Catedral, mas principalmente a parte ornamental. Precioso e rico, o material obedecia ao estilo gótico internacional que estava sendo utilizado nas catedrais da época. Leonardo da Vinci também construiu outros canais que ligavam os canais do Rio Ticino até o Rio Ada, passando por dentro da cidade de Milão, e por isso hoje todos esses canais são chamados genericamente de canais de Leonardo.
No século XX, com os novos sistemas de transporte, em especial as linhas de trem, os canais perderam a importância como via de transporte de mercadorias. Na década de 70 a região foi transformada em parque e na década de 80 foram construídas as ciclovias ao longo dos canais, passando a ter importância fundamental para nós, cicloturistas!!!!!
O tema ciclovia está na moda, muito está se falando sobre como e onde traçar esses caminhos para quem vai de bike. Com um pouco mais de atenção, podemos notar que no Brasil existem muitas estruturas praticamente abandonadas que poderiam ser adaptadas e transformadas em ciclovias, caminhos alternativos para os cicloturistas, longe dos carros. Um exemplo típico são as linhas ferroviárias.
No caso do Parque Ticino, além da ciclovia, há uma estrutura de parque criada sobre o caminho dos canais e do próprio rio, aproveitando a densa mata nativa. O Consórcio Parco Lombardo del Valle del Ticino foi fundado em 1974, tem cerca de 90.000 ha de extensão ao longo do Rio Ticino, incluindo 46 cidades das províncias de Milão, Varese e Pavia. O parque promove o desenvolvimento turístico e social sustentável do território, com atividades culturais e recreativas.
Apesar de não serem mais a rota comercial, os canais permanecem bem cuidados e úteis. Além de melhorar a qualidade de vida de quem mora na área, o parque contribui para a manutenção da flora e fauna da região. Não dá para descrever a alegria de encontrar um lugar assim para pedalar quando estamos viajando perto de grandes cidades. É quase como um oásis no meio do deserto, só que no sentido inverso, um caminho agradável paralelo às autopistas e cidades cheias de carros.
Depois de mais de 40 km de ciclovia plana em meio às árvores, seguindo os Canais de Leonardo, chegamos ao nosso destino. No caminho algumas mansões e jardins nos faziam viajar no tempo e imaginar a Itália Renascentista do séc XVI.
O mais incrível foi pedalar pelos antigos canais transformados em parque e ciclovia, repletos de italianos desfrutando o belo dia de sol. Em um dos dias em que ficamos em Vigevano, com as bikes vazias, seguimos pelo Naviglio Grande até o centro de Milão, visitamos a Catedral e outros pontos históricos e turísticos da cidade.
Fica aqui uma dica para quem pensa em viajar pela Europa: a passagem aérea para Milão atualmente está entre as mais econômicas. Do aeroporto de Malpensa é possível chegar até o centro de Milão pelas ciclovias dos canais, ou então seguir tanto para o norte quanto para o sul da Itália sem passar pela cidade ou por autopistas. Para saber sobre os percursos junto aos canais do Parque Ticino: http://www.provincia.milano.it/pianificazione_territoriale/MiBici/itinerari_cicloturistici/In_bici_sui_canali/index.html
(este relato faz parte da viagem de bicicleta pela Escandinávia em junho/ julho/ agosto de 2008)
Rafaela Asprino e Antonio Olinto integram o Projeto de Cicloturismo no Brasil, que tem como objetivo produzir guias de cicloturismo dos mais variados estilos de viagem. Saiba mais:www.olinto.com.br |