Me apresento aos cicloamigos: me chamo Julio, 30 anos, publicitário, paulista, apaixonado ao extremo por viagens. Há 10 anos minha vida se resumia a trabalhar durante 11 meses para viajar 1 mês, de férias. E com esse foco conheci, mochilando, quase 20 países entre América do Sul, Central e Ásia.
Há alguns anos, porém, pensava e planejava fazer algo a mais. Durante todas as viagens sempre encontrei muitas pessoas que abdicaram de muita coisa, do conforto de seus lares e vidas cotidianas, para viajar um pouco – assim, naquele molde de “sem planos”, “onde a vida me levar”. E me questionava: por que não?
Assim fui me planejando. E no final de 2016 a data foi estipulada: sairia no meio do ano. E também a decisão maior: iria de bicicleta!
Em maio de 2016 fiz a minha primeira cicloviagem, de férias: 26 dias pela Patagônia Chilena e Argentina. E foi apaixonante. A liberdade que viajar de bicicleta nos traz é uma coisa que acredito que apenas os que já viveram conseguem entender. É mágico.
E, assim, no dia 1 de junho, saí de São Paulo rumo a Buenos Aires (de avião) para iniciar a viagem daí.
45 dias e 2.000 km depois, começo hoje a dividir um pouco mais os acontecimentos dessa viagem incrível com vocês. O objetivo? Que conheçam um pouco mais sobre como é essa experiência, que tirem dúvidas e, principalmente, que todos possam se encorajar, se planejar e – de alguma forma – que possam um dia sentir isso, viver isso.
Eu e minha fiel companheira. Muito prazer! – Foto: Julio Pinto
A escolha dos equipamentos
Depois de muita pesquisa e muita leitura, resolvi comprar as peças uma a uma e montar a bike. Comprei um quadro usado de cromo molibdênio (famoso cromoly) por uma razão principal: fácil conserto em caso de ruptura, além da sua resistência. Afinal, com qualquer solda se conserta. Mas como não sou o expert no assunto, não vou me estender muito nesse tópico, há muitos textos sobre materiais de quadro com diversas opiniões.
Grupo Alívio de 9 velocidades, com um pedivela 22-32-42 e um cassete 12-36 dentes para aguentar e levar bem as subidas que enfrento. Freios V-brake, aros 26” e tudo do mais simples, sempre por uma razão: fácil manutenção! Nem todos os países tem tudo que encontramos em grandes cidades (ou até pequenas) do Brasil. Então é sempre bom e importante ter um equipamento de fácil manutenção.
Os alforjes resolvi investir um pouco mais (tá, nem tanto pois um amigo me trouxe dos EUA) e levo um kit da Ortlieb. São 4 do modelo Classic (2 na frente e 2 atrás) + um top rack + bolsa de guidão. Além da resistência e qualidade do material, a simplicidade na hora de montar e desmontar é incrível. Juro que não me toma mais do que 3 minutos para tirar ou colocar tudo na bike. E, claro, a impermeabilidade é uma coisa que me deixa despreocupado.
E assim nasceu a “Laranjinha” – nome que ela tem até então, mas que um dia poderá mudar pois confesso que ela precisa de algo mais original, a estrada a nomeará.
Laranjinha na Ruta 150/Argentina - Foto: Julio Pinto
Os primeiros 2.000 km
Saindo do aeroporto já passei por 8 províncias: Buenos Aires, Santa Fé, Córdoba, La Rioja, San Juan, Catamarca, Tucumán e agora Salta. Sempre evitando as cidades grandes, venho percorrendo muitos lugares incríveis.
O que mais gostei até então foram as paisagens mais no “meio do nada” de La Rioja e Catamarca. São lugares extremamente áridos, montanhas vermelhas e de outras cores. Paisagens parecidas com marte (mesmo que ainda não tenha pedalado por lá...rs).
Abaixo um traçado da rota que fiz até então.
Um exemplo de beleza extrema, e uma das mais belas até então é o Parque Nacional Talampaya. Há uma estrada que corta o parque, com 80 km de paisagens incríveis.
Parque Nacional Talampaya / Argentina - Foto: Julio Pinto
Guanaco no Parque Nacional Talampaya / Argentina - Foto: Julio Pinto
Outro lugar que foi de tirar o fôlego (não só pelas paisagens mas pelas subidas fortes) foi a Cuesta de Miranda, também em La Rioja. As montanhas vermelhas são fascinantes!
Ruta 40 – Cuesta de Miranda / Argentina - Foto: Julio Pinto
Ruta 40 – Cuesta de Miranda / Argentina - Foto: Julio Pinto
Ruta 40 – Cuesta de Miranda / Argentina - Foto: Julio Pinto
Alguns perrengues até aqui
O principal, sem sombra de dúvidas, foi um roubo (furto). Estava acampando em um povoado de 1500 pessoas atrás de um posto de gasolina. Ao acordar pela manhã vejo a bicicleta no chão, sem as rodas! Tentaram quebrar o cadeado, mas não conseguiram. Então levaram as 2 rodas completas.
Por sorte cerca de 4 horas depois as rodas foram encontradas. Foram 2 seres que roubaram 4 casas no povoado. Detalhe: todos os conheciam e eles moravam a 1 quadra da delegacia! Tive que ficar mais 2 dias na cidade mas, no final, acabei conhecendo pessoas que me ajudaram e tudo deu certo. Poucas ferramentas que estavam na bolsa de selim não foram encontradas, mas, dos males, o menor!
Um outro dia bem difícil foi cruzar um deserto por 90km e ficar sem água. Por erro de planejamento, claro. Estava em um povoado com quase ninguém e acabei não perguntando se tinha alguma casa no meio do caminho (onde normalmente vou enchendo as garrafinhas). Pois bem, não tinha! Nem casa nem nada. E fez um sol tremendo no dia. Cheguei na primeira cidade morto de sede... Lição aprendida: se informar mais sobre o caminho e levar água a mais se for o caso.
Ah! Uma coisa que é um perrengue sem fim: dias de pedal com retas intermináveis. Eu pensava que subida cansava, mas o que cansa mesmo é pedalar por uma reta muito longa, daquelas que você vê o final lá longe e parece que não chega nunca. Descobri que mais do que cansar o corpo, o cansaço da cabeça é muito pior!
Um dos dias mais duros de pedal foi um trecho de San Blas de los Sauces até Londres (sim, a cidade se chama Londres e é a segunda mais antiga da Argentina). Foram duas retas: uma de 30 e outra de 40 km. Que dureza!
Uma das retas no caminho a Londres / Argentina - Foto: Julio Pinto
E depois de uma pequena curva, veio outra - caminho a Londres / Argentina - Foto: Julio Pinto
Os mais diferentes “lares”
Uma coisa bastante curiosa e que tenho me divertido bastante é pedir para dormir em qualquer lado. E tem funcionado! Já dizia o ditado, quem não chora não mama!
Já dormi em: escola, delegacia, posto de gasolina, igreja, embaixo de ponte, na beira da estrada...
Principalmente em lugares ou noites muito frias eu sempre dou aquela de coitado e peço para dormir dentro de algum lugar. Além de ser muito mais fácil não ter que montar barraca e tudo mais, no frio é um saco pela manhã desmontar tudo, pois fica tudo molhado pelo sereno e pela condensação dentro da barraca. Aí sempre durante o dia ou na outra noite tem que abrir tudo para secar... Muito melhor dormir debaixo de um teto. E frio é uma coisa que tenho enfrentado muito por aqui. Também, né? Escolhe sair em pleno inverno! Isso que dá!
O dia em que dormi dentro da capela – Povoado de Los Tambillos/Argentina – Foto: Julio Pinto
Em duas cidades me hospedei em Clubes de Cicloturismo. Em uma delas a prefeitura cedeu um espaço enorme e arcava com a manutenção. Assim estimulavam o ciclismo e o cicloturismo. Que incrível né?! Trata-se da Agrupación de Cicloturismo de Pergamino. Lugar para hospedar viajantes, uma cozinha enorme para eventos do clube... Um lugar fantástico! Bem que isso poderia existir em todo lugar e as prefeituras e todos poderiam apoiar mais.
Agrupación de Cicloturismo de Pergaminio – Foto: Julio Pinto
Espaço interno da Agrupación e um trailer onde levam até 20 bikes para fazer passeios em lugares mais distantes – Foto: Julio Pinto
Outras ferramentas que tenho usado muito e que tem me ajudado a continuar economizando (não pagar para dormir é uma economia importantíssima) mas, mais do que isso, me trazido experiências extraordinárias são as plataformas Warm Showers e Couchsurfing. Para quem ainda não conhecia são sites onde as pessoas se inscrevem para alojar pessoas que estão viajando. O perfil das pessoas é muito parecido. Sempre são viajantes entusiastas, curiosos por saber, ansiosos por compartilhar de suas experiências, de contar um pouco a história do lugar, de suas vidas e de seus planos. Até agora me hospedei em 12 casas de pessoas assim. E foram experiências únicas! Seguirei buscando e espero encontrar muitas casas e conhecer muitas pessoas por esse mundão.
E o que tenho aprendido com tudo isso?
A viagem tem sido um aprendizado constante sobre mim mesmo. Claro que nem todos os dias são os melhores da vida. E nem esperava (e queria) isso. Como diz uma música em espanhol que tenho escutado: “Un mar en calma nunca hizo un marinero experto. Y por cierto, es mejor que tus flaquezas asimiles" (Roberto - Cuarteto de Nos). Ou seja, as coisas difíceis e os momentos mais complicados sempre vem para nos deixar mais fortes, para nos ensinar algo.
Nos últimos 45 dias acho que 75% do tempo estou sozinho. E isso também é um aprendizado bastante grande. Afinal, tempo para pensar não me falta. As vezes já me pego falando sozinho, conversando com cachorro, gato, bicicleta e outras coisas...rs. Fazer uma parada na estrada sabendo que não tem ninguém mais nem para um lado nem para outro – e isso, claro, principalmente nos lugares mais remotos como desertos – é incrível. E são em momentos assim que a cabeça da gente vai longe. Vai para frente, volta para trás...
Mas ainda vem muito mais por aí!
Se quiserem acompanhar mais de perto, embarquem na garupa!
Um abraço, boas pedaladas e bons caminhos a todos! Nos vemos!
Julio Pinto
30 anos, publicitário, paulista, apaixonado ao extremo por viagens.
"Há 10 anos minha vida se resumia a trabalhar durante 11 meses para viajar 1 mês, de férias. E com esse foco conheci, mochilando, quase 20 países entre América do Sul, Central e Ásia."