| Texto e imagens por Bruna Fávaro Silvio |
Certa vez ouvi que, diferente do que se acredita, não é o ciclista quem escolhe o destino de uma cicloviagem. Só fui acreditar nessa verdade em dezembro de 2017, quando me vi às vésperas de um pedal de 23 dias pelo Sul do Brasil e litoral do Uruguai, região que nunca estivera em meus desejos mais fervorosos de conhecer. Só havia uma explicação: a viagem tinha me escolhido.
Tudo aconteceu na companhia de pessoas que se tornaram grandes parceiras: Marcelo Rudini, Adriano Sanches e Edson Maia. Cada um participou de um trecho da viagem e contribuiu para que tudo acontecesse. Agradeço demais a companhia e o incentivo que me deram!
Serras Catarinense e Gaúcha
Para quem só conhecia de passagem a cidade de Florianópolis, conhecer outras cidades de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul foi uma verdadeira descoberta do que é capaz de guardar esse Brasilzão que abriga tanta diversidade.
A viagem começou em Lages/SC por uma simples questão logística: havia ônibus noturno de São Paulo direto para lá. Apesar de ser uma cidade grande, rapidamente identifiquei alguns elementos que passariam a me acompanhar dali para frente e que se compuseram para mim como símbolo da região: as casas de madeira, as araucárias imponentes, as roxas hortênsias crescendo naturalmente na beira das estradas, os churrascos em família nos quintais.
Para traçar o caminho, optamos sempre por seguir pelo trecho mais bonito, mais próximo do magnetismo dos cânions e da maciez do chão de terra batida, o que proporcionou contato com pessoas e paisagens das mais diversas e encantadoras, ainda que nem sempre o céu tenha ajudado – trazendo chuvas torrenciais na subida da Serra do Avencal, em Urubici, por exemplo.
O caminho escolhido para esse primeiro trecho foi: Lages – Painel – Urupema – Rio Rufino – Urubici – Bom Jardim da Serra – Silveiras – São José dos Ausentes – Cambará do Sul – Praia Grande – Torres. No entanto, mais do que essas posições geográficas, a distância entre elas ou qualquer velocidade média, o que deixou marcas nesse trecho da viagem foi muito mais o aspecto humano, interno, do que o estatístico.
Tais marcas começaram por, ao longo do caminho, aceitar alguns churrascos oferecidos com sorrisos pelos moradores ou por cruzar fronteiras sem placas, muitas vezes marcadas somente por um rio e uma pequena ponte de madeira.
Não menos marcante foi completar as subidas das serras (ou mesmo daqueles morrinhos mais cascudos) e então notar aquela felicidade vaidosa, que só conhece quem pedala até o fim do que parecia ser impossível e, agora enfim, descobre que é só descida. Ufa!!!!
Seguindo o relato daquilo que me ficou marcado na memória, já perto do Parque São Joaquim, inesquecível ter sido abrigada, numa noite de frio e chuva, pelo Seu Orides, caseiro de uma pousada fechada. Puras gentileza e hospitalidade, em troca apenas de boas conversas e companhia.
Talvez o mais marcante de toda a experiência tenha sido passar a noite de Natal acampando em meio ao esterco num Centro de Tradições Gaúchas, próximo a Bom Jardim da Serra. E como a cereja do bolo, enfim, foi sentir um certo vento grandioso vindo dos cânions da Serra Geral e de Aparados da Serra, enchendo o pulmão de vida nova para um 2018 que estava prestes a chegar.
Em Cambará do Sul precisamos escolher a rota para chegar em Porto Alegre, onde a segunda parte da viagem começaria. Como o plano inicial de descer a Serra da Rocinha não tinha dado certo por conta da interdição desse trecho, optamos por descer a Serra do Faxinal sentido litoral, chegando até Torres e de lá tomar um ônibus para PoA. A partir dali só haveria terreno plano. E com a benção da ignorância, agradeci achando que então seria tudo mais fácil do que aquele interminável sobe-e-desce das serras. Mal sabia que o difícil mesmo estava por vir...
Informações:
Das cidades listadas, todas possuem hospedagens com média de preço entre R$40 e R$50. Por conta das baixas temperaturas e pouca demanda, é difícil encontrar campings, com exceção de Cambará do Sul. Há muitos rios onde é possível tentar camping selvagem. As estradas são tranquilas e há restaurantes e pequenas vendas para abastecimento dentro das cidades.
Há bonitas cachoeiras e rios pelo caminho e, em dias de sol, todos valem uma bela refrescada. Destaque para a cachoeira do Avencal, próximo a Urubici e os poços e quedas da região de Rio Rufino.
Os cânions de Cambará do Sul são imperdíveis. Atente-se à época do ano pois, com chuva/nebulosidade, a viagem fica perdida. O Parque oferece a opção de trilha via parte baixa do Cânion do Itaimbezinho (Trilha do Rio do Boi), saindo da cidade de Praia Grande. Por baixo ou por cima, o roteiro vale muito a pena.
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Praia do Cassino
O segundo trecho da cicloviagem tinha nome e sobrenome. Atravessar os oficiais 224 quilômetros da Praia do Cassino, a maior praia em extensão do mundo. A empreitada teve início na cidade de Rio Grande/RS (onde cheguei de ônibus vindo de Porto Alegre) e tinha como destino a cidade fronteiriça do Chuí, onde chegaria depois de três dias de pedal.
Era janeiro, primeiros dias do ano. Lembro-me de um grande entusiasmo, do prazer em pedalar tendo como vizinha a imensidão do mar. Apesar disso, logo nos primeiros quilômetros já foi possível perceber que, por mais que o terreno fosse plano, havia um desafio grande pela frente.
A cada instante dos três dias que se seguiram, a natureza chegava sorrateira e de mau humor: ora trazendo ventos fortíssimos na direção contrária (o que fazia com que pedalasse a 5 ou 6km/h!); ora chumbando um sol inclemente na cabeça, sem que houvesse qualquer resquício de sombra ao redor; ora sumindo com os pequenos rios de água doce que eram fonte de hidratação; ora tornando o solo fofo e instável, impossível de pedalar com a bicicleta carregada por 5...10… 20... 30 quilômetros.
Em algum momento de dificuldade desses três dias, fiz a famosa pergunta a mim mesma: “O que estou fazendo aqui?” E para tentar responder, parei para observar o que era esse “aqui”... Infinito! Imensidão! Conexão! Era isso que estava posto: viver na pele e fazer parte de uma paisagem que se estende incalculável, seja pelo chão de areia a perder de vista, pela adição infinita das ondas do mar ou de um céu azul entorpecente. Areia... Mar… Céu... A magnitude do cenário apequenando minha presença, meus dilemas, minhas preocupações e dores. E o voo de muitas gaivotas ao nascer ou se pôr o sol, fazendo-me lembrar de que a felicidade é muito, muito simples.
Sem sombra de dúvida, foi a atividade física mais extenuante que vivi na vida. Conheço quem a tenha feito sob a guarda generosa do bom tempo, terreno e condições. Talvez o segredo esteja no próprio nome: Cassino. Você gira a roleta e quem sabe o que o destino lhe trará?
Parti para o terceiro e último trecho da cicloviagem com a sensação de que, nesse jogo, havia tirado a sorte grande. A sorte de me sentir capaz de encarar qualquer caminho que escolhesse.
Informações:
Toda facilidade que existe em termos de orientação, afinal, é uma grande “reta”, paga-se pela falta de abastecimento e terreno exigente. Não é preciso dizer que não há nada parecido com um mercado durante todo o trecho, portanto deve-se ir bem preparado para a quantidade de dias previstos.
Há alguns faróis pelo caminho, que costumam servir de parâmetro da distância do dia. Um deles, o Albardão, abriga funcionários da Marinha e hospeda os cicloviajantes. Eles têm cama e chuveiro quente, mas você deve ter tudo o que necessita usar.
Bicicletas de pneu fino estão fadadas a atolar a cada 50 metros. No 3º dia, encontra-se o trecho chamado “concheiro”, onde a areia fica realmente muito fofa, carros atolam e a bicicleta, mesmo sem bagagem, simplesmente não avança. O trecho varia entre 20 e 40km, então procure estar com a bicicleta o mais leve possível.
Outro grande vilão é o vento. Vindo de norte/nordeste, você nem o percebe, pois está empurrando a bicicleta para frente. Vindo de sul/sudeste, faz uma força contrária tão grande que é como se você estivesse subindo uma serra.
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Litoral do Uruguai
Depois de todo desgaste físico da praia do Cassino, pedalar pelo litoral do Uruguai foi como estar, de fato, de férias. O trecho começou na própria cidade do Chuí, onde realizei minha primeira passagem de fronteira internacional sobre duas rodas! Dali, segui por 7 dias até a badalada Punta del Leste, de onde tomaria um ônibus de volta a São Paulo.
É curioso o que faz uma fronteira. Ao mesmo tempo em que inúmeros costumes se mantém a revelia de qualquer demarcação territorial, como o chimarrão ou a tradição de dar nome às casas, por exemplo; outros saltam inéditos e próprios de seu lugar, de seu país: a arquitetura das casas do litoral uruguaio - estreitas, quadradas e altas -; a desenvoltura com que famílias inteiras, dos bebês às vovós, desfrutam suas férias acampando em parques públicos; o cuidado na sinalização de trânsito e qualidade dos acostamentos nas estradas; a tranquilidade silenciosa dos grupos em festa.
Ali encontramos uma porção de outros cicloviajantes, assim como eu, atraídos pelo que o trajeto tem de melhor: a possibilidade de pedalar com facilidade por toda uma manhã e desfrutar de praias bonitas e agradáveis durante o restante do dia. E foi assim que conheci Punta del Diablo, Aguas Dulces, Valizas, La Paloma, Jose Ignacio e a cereja do bolo: Cabo Polonio, com seu farol que parece tirado de histórias de marinheiros antigos e com sua curiosa e barulhenta colônia de leões marinhos. No caminho, também atravessamos a Laguna de Rocha por um banco de areia: de um lado a laguna, de outro o Atlântico. Era como estar ilhada num sonho.
E então, mais de vinte dias depois, cheguei ao destino final, Punta del Leste, que me pareceu uma anomalia de consumo, valores e ritmo diante de tudo que havia vivido até ali, fazendo fortalecer dentro de mim a certeza sobre meu lugar nesse mundo.
Informações:
Encontra-se campings em todas as praias do litoral do Uruguai. Além disso, a estrada é tranquila, principalmente a Ruta 10. Entre La Paloma e Santa Isabel há uma região chamada Laguna de Rocha, que tangencia o mar. Dependendo da situação do banco de areia que se forma, é possível atravessá-la empurrando a bicicleta por uns 2 ou 3km.
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Retorno
Entrei no ônibus em Punta del Leste e, quase 35 horas depois, abria a porta da minha casa. Não sei se essas horas de viagem de volta foram suficientes para digerir todo o turbilhão de sensações, sentimentos e pensamentos vividos durante essa que foi minha terceira cicloviagem, mas talvez a primeira que tenha feito à minha maneira. Tendo a acreditar que não, pois ainda me pego encerrando, entendendo, ampliando alguns dos momentos vividos. Se há uma certeza, é esta: de cima de uma bicicleta, o mundo é um lugar tranquilo.
Só desejo que a roleta continue girando a meu favor e que seja mágica a próxima cicloviagem a me escolher.
Informações adicionais
Os trechos de ônibus foram feitos levando a bicicleta em um mala bike Arara Una. Nenhuma das viações fez objeção ao transporte. Durante o pedal, deixava o mala bike preso na parte de cima do bagageiro.
Usei um par de alforjes impermeáveis Corisco, que resistiram com louvor às chuvas da serra, aos terrenos pedregosos, à areia fofa e não me deram trabalho de ficar escapando do bagageiro.
Levava alimentação completa para três dias bem como todos equipamentos para camping, o que garantia a liberdade de poder parar quando sentia necessidade. Os pernoites foram distribuídos entre camping pago, camping “selvagem” e pousadas simples.
A orientação foi feita por GPS e pelos guias da região Sul feitos pelo Olinto e Rafaela e Guilherme Cavallari, além, é claro, do tradicional papo com as pessoas locais.
Informações detalhadas sobre cada uma das partes da viagem você pode conferir no meu perfil no site AventureBox: aventurebox.com/brunafavaro
BRUNA FÁVARO: Professora, montanhista e ciclo-mochila-viajante. Iniciante e entusiasta no universo das viagens sob duas rodas, é cheia de planos pro futuro e quer retornar, de bicicleta, a todos os lugares onde já esteve.