1° Diário - 03 de dezembro de 2001 Início
Enfim a viagem começou! Há dois dias atrás sai de Cordisburgo ,MG, em direção oeste, para chegar na Cordilheira dos Andes e percorrer as Rotas Incas, completando a primeira etapa da Volta ao Mundo de Bicicleta. O amigo velejador Amyr Klink tem uma frase que adoro: "O pior naufrágio é não partir". Felizmente esta difícil etapa já ocorreu. Escolhi Cordisburgo por ser a terra de meus ancestrais, terra do importante escritor Guimarães Rosa, da Gruta de Maquiné e também terra da abóbora.
Sai de Cordisburgo abençoado pelas chuvas de verão. Escolhi passar somente por pequenas estradas, preferencialmente de terra, e cheguei em Pontinha. As estradas de terra em alguns momentos pareciam rios. A roda da bicicleta ficava um palmo debaixo d'água. O dia inteiro foi uma variação de chuva e sol. A paisagem fica muito bonita com o sol iluminando as árvores ainda molhadas. Pontinha é uma vila formada pelos herdeiros do lendário escravo Chico Rei e ainda mantém a tradição da África. Nada mal para quem está viajando a procura de história...
Hoje a vila é formada por mais ou menos 900 pessoas - todos descendentes de escravos vindos do Congo. O pequeno povoado se orgulha por suas mulheres nunca terem se misturado com nenhum homem que não seja da comunidade, o que dá à vila a peculiaridade racial. Os documentos das terras se perderam e hoje são donos das mesmas através da Lei do Usocapião. Infelizmente poucos dali cultivam a memória dos ancestrais. Vivem com certas dificuldades e em habitações precárias, com poucos empregos disponíveis, ora extraindo o minhocuçu para vender aos pescadores, ora trabalhando nas plantações de eucalipto, nas catas de cristais, nas pedreiras de ardósia, nas fazendas ou por conta própria, com criações e plantações.
De Pontinha vim para Papagaio (maior produtor de pedra ardósia do Brasil e segunda do mundo depois da França). A viagem foi toda em estrada de terra com muito sol. Pela manhã passei pela Lagoa Dourada e depois por uma grande plantação de Eucalipto onde todas as estradas são iguais e tive de utilizar várias vezes a bússola para me orientar. Lá batizei a bicicleta e minha perna com um belo tombo. Foi quando percebi que havia esquecido meu kit de primeiros socorros. Providenciei um curativo e, para minha surpresa, depois de pequenos dois quilômetros avistei uma fazenda com a placa "Fazenda Dr. João". Dr. João, médico de Belo Horizonte, tinha chegado há alguns minutos e foi quem me arrumou um curativo, água gelada e algumas mangas. Caiu do céu. Daqui sigo para a nascente do Rio São Francisco, na Serra da Canastra. Um abraço e até a próxima!
2° Diário - 14 de dezembro de 2001 Pontinha - São Roque de Minas
A região de Pitangui é muito importante por sua história na época da escravidão. O próprio nome da cidade refere-se à abundância das pepitas de ouro encontradas no local. Pitangui é a sétima Vila mais antiga de Minas Gerias, precedida por Mariana, Ouro Preto, Sabará, São João Del Rei, Caeté e Serro. Participei da reinauguração do Santuário da Nossa Senhora da Conceição, construído em 1717 a cinco quilômetros de Pitangui. A reforma foi feita para a festa de romeiros que ocorreu dia 10 de dezembro, reunindo milhares de devotos da Virgem de todo o país. Não fiquei para a festa mas o pouco que pude ver foi muita cachaça, latas e plásticos jogados por todos os cantos, principalmente na margem do rio Pará.
Precisa muita reza para perdoar tamanho desafeto pela natureza. Saindo da histórica região do ouro segui para as vastas plantações de café e cana. Local de terra roxa, encontrada também no norte do Paraná e oeste paulista, terra de grande fertilidade que resulta da decomposição do basalto. Nesta época é comum muita chuva no clima tropical úmido mas para minha sorte e azar dos agricultores tive duas semanas de muito sol. Sempre evito grandes estradas de asfalto mas foi inevitável percorrer uma parte da BR 262, entre Bom Despacho e Arcos. Dali segui para Piumhi, parando no meio do caminho na fazenda do "Marquinhos do Alaonte" ao lado da Lagoa de Inhuma.
A região tem poucos declives e, acima dos pequenos morros, foi possível enxergar longe a serra da Pimenta. Com o baixo ruído produzido pela bicicleta, é possível ver diversos animais, toda a viagem foi acompanhada de muitas garças, gaviões, pica-paus, maritacas, anus-brancos, sariemas, marrecos, perdizes, codornas, pombas-de-bando, capivaras, tatus, pacas, lontras, quatis, macacos e micos. Na região também era comum avistar o famoso tamanduá-bandeira que não encontrei e está em extinção. A população desta região é extremamente hospitaleira e toda parada nas casas e fazendas de beira de estrada era acompanhada com cafezinho, bolo de fubá, pão de queijo, etc. sempre na beira de um fogão a lenha com muita conversa. Além da comida oferecida pelos moradores locais, a estrada está recheada de mangueiras carregadas que me ofereciam um lanche fácil e saudável. Passei por Iguatama, segunda cidade banhada pelo Rio São Francisco.
Lá uma grande carranca recém esculpida homenageia os barranqueiros do importante rio. Esqueci de trazer alguma música. Isso está sendo bom, me acostumei com os sons dos animais e, quando vem algum carro, já escuto de longe, dando tempo de me proteger. Acho que os últimos seis meses trabalhando com construção em São Paulo me ajudaram a valorizar o silêncio... Apesar de existirem alguns fazendeiros inconscientes, a população, de uma forma geral, está melhorando muito seus hábitos de preservação da natureza. Encontrei várias gaiolas vazias e apenas alguns senhores de mais idades ainda mantém este hábito antiquado de prender pássaros. Hoje vê-se mais pessoas alimentando e protegendo os animais livres e, principalmente as crianças, estão cada vez mais conscientes de suas responsabilidades com a preservação de nossa fauna e flora.
Passei por Piumhi e fiquei maravilhado com o trabalho da prof. Maria Serafina de Freitas, uma senhora de 85 anos cujos 65 últimos foram dedicados à educação. Hoje ela faz um trabalho voluntário com cerca de 300 crianças através da APROMIP, Associação de Proteção à Maternidade, Infância e Adolescência de Piumhi. Lá todas as crianças recebem almoço, reforço escolar, atividades artísticas e, principalmente carinho. Tudo isso mantido por seus ex-alunos (praticamente todos 30 mil moradores da cidade).
A cidade não tem crianças na rua absolutamente nenhuma! Todos preferem dividir o dia entre a escola e a APROMIP. Uma associação não governamental que serve de exemplo para o que deveria ser a nossa vergonhosa FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Essa senhora muito lúcida, desenvolveu um método de alfabetização através do seu livro "O circo do Carequinha", que ganhou vários prêmios e chega a alfabetizar crianças em até vinte dias. Parabéns Maria Serafina!
Passei pelo povoado de Campinópolis, conhecido por "Cabrestos" e segui para Vargem Bonita que comemorou 48 anos coincidentemente no dia que passei por lá. A festa teve Folia de Reis, Violeiros, churrasco e cervejada mas a maior concentração ficou mesmo no conjunto que veio de Divinópolis para animar a cidade. Vargem Bonita é a primeira cidade banhada pelo Rio São Francisco e também a primeira a poluí-lo.
É impressionante como em pleno Séc. XXI ainda existam cidades que não possuem uma estação de tratamento de esgoto. A água doce é o bem mais valioso que o Brasil possui e será a grande impulsionadora para o desenvolvimento turístico nacional. Apesar de uma conscientização unânime sobre a importância de nossas bacias hidrográficas ainda estamos distantes da situação ideal de manejo destas áreas. É fundamental que esta consciência saia do papel e torne-se realidade. Poluir um rio, além de biologicamente inaceitável, é economicamente uma estupidez. Segundo a prefeitura já existe um projeto para tratamento do esgoto e revitalização da mata ciliar. Vamos torcer para que logo possamos chegar em Vargem Bonita e tomar um banho em águas limpas do velho Chico. Atualmente 14 milhões de pessoas dependem das águas da bacia do São Francisco.
A pequena nascente na Serra da Canastra dá origem a um rio que percorre cerca de 3.160 quilômetros, passando por cinco estados brasileiros, antes de desaguar no Oceano Atlântico, entre os estados de Sergipe e Alagoas. Existe uma Campanha para transformar o São Francisco em Patrimônio Mundial, maiores informações podem ser encontradas no site www.aguasdovelhochico.com.br .
Hoje estou em São Roque de Minas. A prefeitura e o Ibama estão me dando total apoio e amanhã devo começar a travessia do Parque Nacional da Serra da Canastra. Ontem conheci o escultor Chico Chagas que mora em uma casa centenária afastada da vila e faz carrancas, cachaça, queijo e conta muitos casos. Me presenteou com algumas raízes e folhas para fazer chás medicinais. Aproveito para agradecer todos que estão me ajudando. Além das várias novas amizades ao longo do caminho também agradeço a todos que durante o complexo momento de elaboração do projeto me apoiaram. Em especial agradeço a patrocinadora Cultura Inglesa e os apoios BHZ Arquitetura, Atex-Lajes nervuradas, SOL-serviços on line, Prudential Bradesco seguro de vida, Auge Design, Aliança Francesa e Rotary Clube. Também agradeço todas as escolas que se cadastraram, demonstrando interesse pelo projeto. A próxima etapa será atravessar a Serra da Canastra e seguir o Rio Grande. Vale lembrar que o Pedalando e Educando foi projetado para possuir quatro patrocinadores e que ainda restam três espaços em aberto para serem divididos com a Cultura Inglesa. Estas parcerias serão indispensáveis para a continuidade do projeto educacional. Toda sugestão é bem vinda. Um grande abraço, Argus
3° Diário - 02 de janeiro de 2002 Serra da Canastra e Rio Grande
Atravessei a importante e belíssima Serra da Canastra, Parque Nacional onde nasce o Rio São Francisco. Foram três dias de muitas pedaladas e "empurradas" para subir os morros da região. Com autorização do IBAMA dormi dentro do parque e, apesar da beleza do lugar, o primeiro dia de pedalada foi horrível. Chegando na nascente do São Francisco a bicicleta estragou e o local que pretendia chegar em uma hora só foi alcançado depois de cinco horas. Cheguei à meia noite na parte alta da cachoeira Casca Danta empurrando a bicicleta com muita chuva e pouquíssima visibilidade. Muito cansado dormi em um banheiro onde improvisei uma comida com queijo, rapadura e o chá de sassafrás que Chico Chagas me presenteou. No outro dia segui para o vilarejo de São João Batista, pedalando pelos campos rupestres, vegetação predominante, e alguns cerrados e matas ciliares. Lá dormi e comi bem para compensar o cansaço do dia anterior. Depois fui em direção à portaria oeste do parque. No meio do caminho encontrei um morador local, Sérgio, que sugeriu que eu fizesse este trecho ao norte do parque, onde ele mora.
Aceitei a sugestão e fui com ele fazendo trilhas e caminhos quase impossíveis para quem não conhece bem a região. Esta região, Cachoeira da Boa Vista, praticamente não possui telefone, estradas nem luz mas possui muita tranquilidade. Todos comem muito queijo e tomam café moído na hora, tudo produzido ali. Acostumados com a simplicidade vivem em casas pequenas, normalmente perto de algum riacho, com plantações para subsistência e gado para o leite e transporte.
Segui para Desemboque por fora do parque, atravessando vários riachos e pedalando em estradas de terra onde poucos 4x4 passariam. O parque neste trecho é uma chapada monótona e a dica do Sérgio realmente valeu. Por fora do parque parte de baixo - é possível ver toda a serra que se ergue quase verticalmente, característica que deu a ela o nome de Canastra, lembrando uma cesta larga de madeira.
A vila é hoje distrito de Sacramento com duas Igrejas, duas escolas e não mais que trinta casas. É de lá o nosso grande ator Lima Duarte, famoso Sassá Mutema.
Em Desemboque encontrei os Foliões de Reis "Embaixadores da Serra da Canastra". Nessa época é muito comum encontrá-los fazendo suas folias e benzendo as casas pelas estradas. Resolvi ficar mais um dia para acompanhá-los e conhecer um pouco mais sobre essa nossa festa folclórica.
Deixei a folia e segui para Uberaba, passando por Peirópolis, onde foram encontrados ossos de dinossauros e foi construído o Museu Paleontológico de Peirópolis. O museu é bastante interessante mas o atendimento deixa a desejar, não tinha ninguém para dar informações ou entregar algum folheto. Tirei uma foto com a réplica de um dinossauro e segui viagem.
Passei o Natal em Uberaba com meu melhor presente de todos, a companhia da minha família que viajou até lá para festejarmos juntos. Depois de um bom descanso natalino segui margeando o Rio Grande em direção ao Mato Grosso do Sul. Passei por Planura, Itapagipe e São Francisco de Sales que coincidentemente comemorava 39 anos de emancipação.
Minas Gerais, apesar de não possuir costa marítima, possui mais margem com água que os estados litorâneos. É o estado com o maior water front do país e por isso é também conhecido como caixa d'água nacional. A região do Rio Grande que estou percorrendo era ocupada pelos ferozes índios "Bororos" que foram totalmente dizimados.
PATROCÍNIO: Cultura Inglesa APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Aliança Francesa, Prudential Bradesco, Rotary Club e Telemig Celular
* Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br
<< Pedalando e educando: O Projeto Pedalando e educando: 2º Relato>>