O projeto Qhapaq-Ñan é a uma expedição de quatro viagens que juntas unem o trajeto entre Quito (Equador) e Santiago (Chile), percorrendo de forma aproximada o antigo Caminho Inca ou Qhapaq-Ñan, também conhecido como o caminho da sabedoria.
Esta rede de caminhos unia o antigo império com uma vasta rede de ramificações e foi recentemente declarado patrimônio da humanidade pela UNESCO.
A idéia surgiu após a primeira viagem (Andes1) que resultou na descoberta do potencial imenso da região para o cicloturismo e também o valor deste caminho misterioso e gratificante.
Desta vez, realizei sozinho o segundo trecho: Sajama / Salta, percorrendo o Altiplano Sul na Bolívia e o Norte da Argentina, com um total de 1350 km pedalados em 17 etapas.
Pelo fato de viajar só, em pleno inverno, a atenção aos pequenos detalhes e para o equipamento foi redobrada. Levei em conta, principalmente, as baixíssimas temperaturas que poderiam ser inferiores aos -20ºC e a necessidade de se portar água e comida para atravessar vastas regiões desérticas, com a devida autonomia.
Além disso, levei comigo um pneu sobressalente, antibióticos, um GPS e demais enceres próprios do cicloturismo de aventura, como o saco de dormir, barraca, ferramentas, etc.
No dia 6 de agosto de 2007 parti de Sajama, uma pequena vila situada na fronteira com o Chile, aos pés do vulcão homônimo que é o mais alto do país com 6548m de altitude. Cheguei lá de ônibus, após aclimatização em La Paz, e permaneci dois dias mais, preparando minha bicicleta e meu organismo para pedalar numa altitude media de 4000m.
Comecei a minha aventura rumo ao salar de Coipasa por um terreno extraordinariamente difícil, principalmente pela areia nos caminhos. Parei nas vilas de Macaya e Sabaya para pernoitar e logo depois seguir caminho para os salares. Macaya é bem menor que Sabaya e conta com um quartel do exército especializado em andinismo.
Ali recebi apoio por parte do comandante que me convidou a jantar a ração dos soldados. Já Sabaya é maior e conta com duas ou três pousadas além de postos telefônicos. Quando cheguei, as duas localidades estavam em festa e a maioria dos seus moradores embriagados. Após bom descanso parti para o Salar de Coipasa, onde encontrei dificuldade para encontrar o caminho. Uma vez no salar, na beirada, a camada de sal é relativamente fina e úmida, o que não facilitou muito esse trecho, pois os pneus afundavam 3 centímetros no piso.
À medida que avançava, porém, fui adquirindo velocidade, pois o piso se torna mais compacto. Montei acampamento com facilidade após certa dificuldade de orientação, pois o meu GPS dava leituras errôneas (já tinham me avisado que nos salares isso seria uma possibilidade).
Resolvi, portanto, apontar meu rumo para certas montanhas no horizonte, como indicado por pessoas que encontrei nas imediações. No dia seguinte dirigi-me a cidade de Llica onde encontrei pousada e vendinhas onde me abasteci com suprimentos, além de telefone e internet (esta bastante precária, por ser via satélite).
Após pernoite me preparei para entrar no famoso salar de Uyuni, atravessando-o (160 km) sem grandes dificuldades, a não ser a impossibilidade de montar a minha barraca devido à dureza do sal cristalizado do solo, o que me obrigou a dormir a céu aberto a pelo menos 15 graus negativos.
Estava no meio daquele mar morto, numa imensidão fantástica, com a visão do vulcão Tunupa ao norte. Após acampar nos salares, pedalei até a cidade de Uyuni onde descansei por duas noites aproveitando a boa infra-estrutura turística.
A partir de Uyuni continuei por estradas de terra sempre difíceis e repletas de costelas rumo ao Sul passando por Atocha para pernoitar. Atravessei uma serra imensa e dormi no topo de uma montanha, a 4200m, nas minas Tolamayu, onde os mineiros acostumados a receber viajantes sem refúgio me cederam um pequeno cômodo empoeirado.
Segui caminho e parei uma vez mais para descansar na aprazível cidade de Tupiza. Ali, como em Uyuni, lavei minha roupa, desfrutei de longas chuveiradas quentes e boas refeições.
Neste ponto já estava bastante integrado no meu percurso solitário pelo Altiplano Sul, assim como tinha me acostumado a dureza do terreno, que não era pouca. Em Tupiza tive a oportunidade de presenciar a festa nacional do dia da bandeira com direito a desfile, comidas e refrescos populares em pequenos quiosques improvisados na rua.
Dali continuei até Villazon, conhecida como a Tijuana Boliviana pelo fato de ficar exatamente na fronteira com a Argentina e ser um ponto de contrabando.
Desde Villazon visitei a cidade de La Quiaca na Argentina. Este passeio foi feito a pé, pois é necessário apenas atravessar a ponte que divide as duas cidades. A partir de La Quiaca me encontrei com o asfalto argentino, depois de 723 km pedalados por caminhos de terra e salares na Bolívia.
Na Argentina atravessei parte da Puna da província de Jujuy e a Quebrada de Humahuaca - Patrimônio da Humanidade - passando pelas cidades históricas de Humahuaca (onde pernoitei com boa infra-estrutura), Tilcara, Maymará onde também parei para dormir e Pumamarca.
Em Purmamarca iniciei a subida da Cuesta de Lipan, uma subida inesquecível de 37 km com 2000m de desnível, onde encontrei ventos de força avassaladora. Acampei no topo, a 4.200m de altitude para no dia seguinte descer até o terceiro salar da minha travessia: as Salinas Grandes.
Na beirada das salinas acampei em plena Puna e no dia seguinte me dirigi à vila de San Antonio de los Cobres. A partir deste salar voltei aos difíceis caminhos de cascalho e areia que me eram tão familiares.
Depois de um dia duro, já dentro da província de Salta cheguei à vila mineira de San Antonio. Bastante cansado e depois de 2 dias seguidos acampado e comendo enlatados esperava encontrar mais infra-estrutura, mas a cidade mineira não tinha muito a oferecer, além do básico.
|
Na manhã seguinte iniciei tarde a etapa do dia, confiante no declive e no asfalto que esperava encontrar. No entanto as primeiras horas foram muito complicadas pelo vento, uma força brutal que me obrigou a desmontar da bicicleta várias vezes, quando não me jogava para fora da estrada ou tinha limitada minha visão a um palmo, levantando uma verdadeira tormenta de areia.
Depois do vendaval e na medida em que a estrada descia, comecei a sair do mundo da altitude e do vento, visualizando outras geografias.
Cheguei até Santa Rosa (3200m) para visitar nas redondezas as ruínas de Tastil, cidade pré-hispânica que faz parte do caminho Inca. A vila é extremadamente pequena e não conta com alojamentos turísticos nem restaurantes a não ser uma venda onde servem pratos quentes. A moradora Sra. Maria proporciona alojamento simples.
Na manhã seguinte, ansioso para chegar, empreendi a última etapa de minha rota. Havia dias não sabia o que era descanso de qualidade, chuveiro e alimentação adequada. A estrada era quase toda em descida e asfaltada na sua maior parte o que facilitou bastante o meu dia e me permitiu avançar com facilidade. A chegada em Salta (1100m), a maior cidade desde La Paz, foi um pouco complicada, pois ela tem várias pistas e saídas, além do trânsito intenso onde nem sempre se é permitido o tráfego de ciclistas. Tive que atravessar os subúrbios até chegar ao meu hotel no centro histórico. Antes de voltar ao Brasil fiquei desfrutando de passeios pela cidade, comendo fantásticos churrascos e descansando.
Para ler o diário de bordo (relato detalhado) e ver todas as fotos (galeria) acesse o site: www.qhapaqnan.net e o blog: www.qhapaqnanbike.blogspot.com
Expedição Andes: Etapa 1 - do Altiplano ao Oceano Pacífico
Manuel Rama Terra,viveu muitos anos fora do Brasil,Na Espanha,Alemanha e México. Fotógrafo e Videografo profissional .Desde 1997 desenvolve cartões postais das cidades do Rio de Janeiro,Paraty,Salvador e Ouro Preto com a editora da qual e fundador: M.R.Terra Edições. Em 2002 foi Co-Fundador do Clube de Ciclismo de Longa Distancia:Audax Brasil. Em 2003 foi o primeiro brasileiro a participar e concluir a ultramaratona de ciclismo Paris-Brest-Paris. |