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Expedição Buritis: uma viagem pelo sertão

 

EXPEDIÇÃO BURITIS uma viagem pelo sertão

 

Vaqueiro

Corinto: portão do Sertão Mineiro - Quando estava no internato rural da Faculdade de Medicina, na cidade de Corinto, ressurgiu a idéia que há muito tempo tive, que era percorrer um trecho do sertão mineiro de bicicleta. Ao reler Grande Sertão Veredas logo na primeira página estava escrito: Corinto é o portão do sertão mineiro. Pude realmente perceber o porquê disto. Além das alterações no relevo e vegetação, que se tornam mais evidentes a partir de Corinto, é nítida a diferença cultural da população desta região. Trata-se de um povo de fácil convivência, hospitaleiro, porém com certos valores muito arraigados. Ao mesmo tempo em que são brutos, são também delicados. São desconfiados, porém sempre abertos para uma boa prosa.

Entardecer no Sertão

 

Preparativos para a expedição- Somente dois anos depois o desejo se tornaria realidade. Em junho de 2001 idealizei junto Daniel Knupp e Paulo Bedran um roteiro que partiria de Corinto e percorreria um trecho margeando o Rio das Velhas para depois alcançar o Rio São Francisco. A partir daí chegaríamos à mítica São Romão, aonde abandonaríamos as margens do Velho Chico e partiríamos sertão adentro tentando alcançar o Parque Grande Sertão Veredas. Finalmente chegaríamos a Arinos (conhecida como um dos locais mais quentes de Minas).

Cachoeira do Rio de Pedras, Corinto-MG

Aqui também o primeiro remendo teve que ser feito. Antes de seguirmos em frente ficou resolvido que iríamos desviar da estrada principal e entraríamos pela Serra do Cabral. Queria revisitar uma bela cachoeira e seu "dono", Lico.Também seria um teste para a equipe e as bikes já que teríamos de pedalar em estrada de terra e areia. Foi realmente um pouco cansativo, mas logo chegamos. Encontramos Seu Lico, típico sertanejo, brincalhão e cismado. Ao chegar à Cachoeira dos Porcos (seu nome antigo é mais poético: Cachoeira do Rio das Pedras) todos ficamos impressionados. Um rio que desce por mais de 5km em uma laje de pedras formando piscinas naturais de extrema beleza. Tudo isso se torna mais impressionante quando percebemos que as margens são um local bastante seco e desolado.

Estação Ferroviária de Lassance-MG

A ida à cachoeira teve um preço alto. Logo na saída tive um acidente que quase acabou com a viagem no primeiro dia. Uma tira de borracha que prendia meu isolante arrebentou e por um capricho foi parar logo no cambio traseiro. Foi um tombo muito feio além de quase ter quebrado o câmbio da bicicleta. Isto nos atrasou muito. Tivemos de percorrer cerca de 20 Km em plena noite. Não que fosse ruim, pois a lua iluminava a estrada, o cheiro do mato e o som do vento nos hipnotizavam. Acabamos chegando à cidade de Lassance quase 8 horas da noite, exaustos e esfomeados. Lassance tem cerca de 5000 habitantes. É um dos maiores municípios do estado com uma área de quase 3000km2. Seu povo é bastante hospitaleiro. Ficou famosa devido ao fato de ter sido nesta localidade que Carlos Chagas descobriu o ciclo da Doença de Chagas.

 

Mudança de planos - No dia seguinte cometi meu segundo erro. Não quis almoçar. Comi apenas uma porção de feijão tropeiro! Duas horas depois, com um sol escaldante (fazia cerca de 35ºC), subindo a serra que separa a bacia do Velhas com a do São Francisco, tive que parar a bike. Estava sofrendo de hipoglicemia. Sentia uma intensa dor de cabeça e um sono forte deixando-me uma vontade de deitar. Por sorte carregava um pedação de rapadura na pochete. Mandei pra dentro, e alguns minutos depois já me sentia bem novamente. Mais alguns quilômetros e estávamos chegando em Pirapora. Fomos direto para a margem do rio, para poder assistir a um por do sol. Este nos deu um espetáculo. Além disso, um grupo de crianças que jogava capoeira propiciou belas fotos! Logo a equipe da TV local nos descobriu e combinamos uma entrevista para o dia seguinte.

Ponte Marechal Hermes. Pirapora

Apesar da bicicleta ser um meio de transporte muito utilizado na região (chegamos a ver algumas senhoras carregando fardos de lenha com mais de 50 Kg em suas bicicletas) o cicloturismo é algo novo. Nossas bicicletas coloridas e cheia de bolsas se tornaram uma atração. A cidade é famosa pelo BMX (bicicross). Logo bikers que estavam treinando na pista às margens do rio formaram um bolo em torno de nós. A cidade de Pirapora é muito agradável. À noite fomos jantar e o primeiro momento mágico aconteceu. Estávamos admirando algumas obras, réplicas de vapores que estavam expostas no restaurante. Perguntamos ao garçom quem era o artista e aonde poderíamos encontrá-lo. Ele respondeu: - Olha ele ali na porta! Ele trabalha com o BURITI. Ficamos ainda mais intrigados. E ele usa apenas uma faquinha para construir réplicas que chegam a ter até 3 metros. Foi nesse momento que percebemos que havia um erro de planejamento na expedição. Não havíamos levado em consideração ficar mais de uma noite nas cidades. Porém em Pirapora vimos que se mantivéssemos o ritmo que levávamos iríamos sair percorrendo como loucos o sertão sem conhecer sua maior riqueza: seu povo. A partir deste momento abrimos mão do planejamento inicial, mesmo que para isso não percorrêssemos todo o trecho já que não podíamos abandonar o objetivo maior da expedição, que era o de conhecer e registrar essas belezas.

Mestre Sabino e uma de suas carrancas

 

Carrancas- No outro dia cedo logo após darmos a entrevista, atravessamos a antiga ponte que liga Pirapora a Buritizeiro. Fomos conhecer esta localidade. Lá existe um sítio arqueológico muito importante. Depois fomos visitar a associação de artesãos, onde são feitas as mais autênticas carrancas, imagens e outros artigos. Conhecemos Mestre Sabino, que ensinou a quase todos ali (filhos, sobrinhos e outros) este maravilhoso ofício: a arte de esculpir. A emoção tomou conta de mim. Vimos como ainda é possível o homem viver de forma digna e em harmonia com o meio ambiente. Estas pessoas têm uma vida simples. A cooperação entre eles permite que produzam muito mais e com certa padronização e direcionamento para as demandas. Poderiam receber certificados ISO 14000! Toda matéria prima, segundo nos contaram, provem de refugos de serrarias ou de doações, principalmente da prefeitura, de árvores que precisam ser cortadas e que provavelmente iriam para lixões. Lá compramos nossa mascote: Beriberi. Esta carranquinha passaria a navegar conosco pelo sertão.

Travessia do Rio das Velhas

Na outra manhã estávamos percorrendo o trecho mais perigoso pelo qual passamos por toda a viagem. Estávamos realmente correndo perigo. Pois a estrada ali é uma continuação da BR que vem do triângulo mineiro e segue para o norte do estado. Carretas de soja em alta velocidade nos cortavam. Só não era pior devido à beleza dos parreirais. Esta região tornou-se uma grande produtora de uvas de mesa. O clima e o sol favoráveis juntamente com a irrigação possibilitam a produção de inúmeras frutas em pleno sertão. Tivemos neste trecho o segundo problema. Um dos pneus do Daniel se desgastou rapidamente e rasgou. Não tínhamos pneu reserva! Tivemos de por um manchão e torcer para que encontrássemos uma oficina de bicicletas em nossa próxima parada.

Vista do Rio das Velhas

Tesouros e lendas- Voltamos à Bacia do Velhas, mais precisamente na Barra do Guaicuí, local onde ele deságua no São Francisco. Ao cruzar a ponte uma surpresa. Dois pescadores estavam vendendo dois grandes peixes. Um deles era um belo dourado. Segundo me informaram haviam sido pescados logo ali. Percebi que o Rio das Velhas ainda tinha realmente salvação. Bastava que o homem desse um tempo e não jogasse tanta sujeira e areia em seu leito. Um dia antes havíamos ficado tristes, pois nos deparamos com o Velho Chico num estado lastimável. Nunca estivera tão vazio. É claro que tinha relação com o regime de chuvas, porém o assoreamento intenso que não só ele como seus afluentes sofreram fez com que seu leito se tornasse cada vez mais raso. Foi realmente um impacto para nós. Logo chegamos à Barra do Guaicuí. Trata-se de um pequeno povoado, muito antigo.

Igreja de Pedra (séc XVII), Barra do Guaicuí-MG

Lá por sorte encontramos uma pequena oficina que por incrível que pareça tinha um pneu idêntico ao da bike do Daniel. Para garantir compramos dois. Pedalamos alguns quilômetros e chegamos a um local que sempre me instigou: A Igreja de Pedra. Trata-se de uma belíssima construção do séc.XVII construída a mando do bandeirante Fernão Dias. Infelizmente esta obra não foi acabada, porém a forma com que foi construída reflete a riqueza de um tempo antigo. Paredes com mais de 9 metros de grandes pedras cuidadosamente assentadas lembram as ruínas das missões jesuítas no Sul do Brasil. Diz uma lenda que o verdadeiro corpo do bandeirante fora transportado de barco rio acima para que pudesse chegar à província de São Paulo juntamente com suas "esmeraldas" (na realidade turmalinas) e afundou próximo à igreja. Sua preciosa carga nunca foi encontrada. Uma visão emocionante é a da gameleira que cresceu próxima ao altar e que alcançou o topo da igreja. É realmente uma demonstração da força da natureza, ou melhor, da vida, de como sempre que lhe é permitido, ocupa seu espaço.

Gameleira na Igreja de Pedra

Infelizmente o descaso para com o nosso patrimônio é imenso. Um local como este na Europa seria um museu. Aqui encontramos apenas pichações e fezes humanas. A vista de dentro da igreja para o rio é maravilhosa. Uma das melhores fotos que tirei na viagem foi ali. Poucos quilômetros à frente uma surpresa. Uma grande queimada dos dois lados do acostamento. Ao atravessarmos a cortina de fumaça que se formava o calor chegou a nos queimar. Foi realmente assustador. Ficamos impressionados com a estrada pavimentada a nossa frente. Nunca vi asfalto tão regular. Logo em seguida entendemos o porquê. Uma grande propriedade, que se estendia por mais de 20 km ao longo da estrada, cujo provável dono é um político famoso no estado... De repente cruza por nós um carro, ou melhor, uma coisa em alta velocidade. Era um Ford Fiesta puxando um F250. Coisa de louco!!! Este veículo cruzou por nós mais duas vezes e se foi. Realmente ali é uma excelente pista de teste. Pedalamos 50 km e só cruzamos com este estranho veículo e um caminhão.

Estrada para Ibiaí

Enfrentando a areia- A região é desolada e muito pobre. O povoado do Barro onde paramos contrasta com o grande latifúndio ao seu redor. Ao término do dia chegamos em Ibiaí, onde contemplamos o mais belo pôr-do-sol de toda a viagem. A igreja nova tem uma fachada muito interessante, com um traço mouro que lembra igrejas que vi no Equador. À noite um motorista da Prefeitura alertou-nos sobre as dificuldades que teríamos no próximo dia. A partir dali as estradas seriam de terra, ou como pudemos constatar de areia. Havia duas possibilidades de caminho. O primeiro caminho é mais curto, porém menos trafegado o que aumentaria a probabilidade de encontrarmos areais intransponíveis. O segundo era mais longo e teríamos um problema logístico: cruzar de balsa duas vezes, o São Francisco e o Rio Paracatu. Resolvemos que decidiríamos isto em Ponto Chique. Seguimos logo após Paulo colocar mais uma de suas cartas no correio. Um amigo nos deu a idéia que escrevêssemos cartas todos os dias e as enviasse para BH. Assim além de ter um "back up" de nosso diário estaríamos garantindo a chegada de notícias em "tempo real".

Sol "queimando" no São Francisco, Ibiaí-MG

Saímos bastante animados pedalando pela terra, pois ali era uma marca importante. Já havíamos pedalado cerca de 220 km no asfalto. A partir dali as coisas mudavam. Encontraríamos mais dificuldades, porém acreditávamos que teríamos mais recompensas. As vilas e cidades passariam a ficar mais distantes tanto em isolamento quanto em acesso a eventual ajuda. Logo no primeiro quilômetro percebemos a dificuldade que era pedalar na areia. Nossa velocidade média que era de 20km/h passou para 12km/h. Chegamos ao único ponto de referência que tínhamos em nosso mapa: a ponte que cruza o Rio Pacuí. Este é um famoso curso d`água presente nas descrições dos antigos exploradores, pois sua foz no Rio São Francisco era muito rica em vida animal. Moço, num vai por aí, não- Dali seguimos para Ponto Chique. Paramos numa pequena venda para comer alguma coisa. Logo pessoas foram chegando. Queriam saber de onde e para onde estávamos indo. Riam e ficavam assustadas com o que fazíamos. Aí começou uma grande confusão. Alguns falavam que deveríamos ir pela margem direita, pois era mais perto e mais fácil. Tinha apenas alguns areais. Outros frisavam que não. A melhor opção era seguir pela margem esquerda. Primeiro porque havia algum trânsito e se precisássemos de ajuda seria mais fácil. Ficamos confusos. A turma da margem direita conseguiu nos convencer. Por votação resolvemos seguir esta margem. Porém algo me falava para ir pelo outro caminho.

Canoa no Velho Chico

Quando já estávamos saindo um senhor nos cercou e falou assim: - Moço num vai por aí não! Ocês vão sofrê muito!!... Esta frase nos fez mudar de opinião. Seu discurso era veemente. Contou-nos que tivera de passar de bicicleta pela margem direita há alguns dias. Carregava em sua bicicleta um leitão.Teve de empurrar por horas. Mudamos imediatamente de rumo, em direção à balsa. Tivemos uma surpresa ao depararmos com um urubu rei bem acima da estrada dando voltas para encontrar uma corrente ascendente. Ao chegar na margem: uma desagradável surpresa. A balsa que faz a travessia estava estragada e precisávamos agora contar com a sorte para conseguir atravessar o rio. Passaram-se 20 minutos até que um barqueiro surgiu. Por sorte conseguimos colocar as bicicletas na canoa e atravessar o Velho Chico pela última vez. Na margem esquerda fica a localidade de Cachoeira da Manteiga. Este lugar é bastante freqüentado por grupos de pescadores que ali ficam em seus ranchos. Era por volta da uma da tarde quando partimos. O sol estava escaldante (isto em pleno inverno). Seguimos margeando o rio até onde pudemos. A estrada tornava-se cada vez pior. Quando não eram os areais para dificultar, surgiam costeletas que tornavam ainda mais difícil e desconfortável nossas pedaladas. Após dez quilômetros estávamos famintos. Surgiu então uma plantação de eucaliptos a nossa direita que serviu para produzir um pouco de sombra. Porém a alegria durou pouco. Mais uma hora de pedaladas e estávamos nos aproximando de uma região de mata, que eu jurava já ser a mata ciliar de um rio. Chegamos então à segunda balsa, localizada no Rio Paracatu. Este é bem mais estreito que o Velho Chico e com barrancas bem mais altas. Aguardando a balsa estava um grupo de pescadores paulistas. Estavam ali há uma semana e ainda não haviam pescado nem para comer. Realmente estavam desanimados. Disseram que nunca viram o rio assim.

Cadeia Antiga de São Romão

Recusando carona- Após a travessia, subimos em direção oeste nos afastando da margem do rio. Logo chegamos numa bela Vereda e num trevo. O Júnior não estava se sentindo bem. O fato de ter almoçado muito, o calor e a atividade física fizeram com que passasse mal. Resolvemos dar um descanso de 20 minutos nesta vereda. De repente passou uma caminhonete. O motorista ficou assustado ao nos ver. Queria nos levar para sua fazenda no rumo oposto ao que iríamos. Depois, segundo disse nos levaria até São Romão. Vi a cara do Júnior quase dizendo sim. Não hesitei em agradecer. Expliquei para ele qual era nosso objetivo. Além disso, aguardavam-nos por lá. Decidimos que chegaríamos a São Romão ainda naquele dia, mesmo que tivéssemos que pedalar noite adentro. Foi a partir dali que percebemos o que era o sertão e qual a dificuldade de percorrê-lo. Estávamos num platô. A nossa frente uma reta que se perdia de vista. Dos dois lados só a mata seca, transição de cerrado e caatinga. Uma agonia surgiu. Apesar de estarmos numa reta quase plana não conseguíamos passar de 8km/h. O areal era realmente algo de difícil transposição, ainda mais com bicicletas pesando cerca de 120kg.

Senhoras de São Romão

Para conseguir chegar tivemos que entrar numa espécie de transe. Esquecer o tempo e só pedalar. No ritmo que conseguíamos. Sem parar. Uma pedalada de cada vez. Lembrou-me muito as escaladas que já fiz em altas montanhas, em que cada passo é uma vitória, o sofrimento é uma constante e o cume incerto. Os tombos começaram a se tornar mais freqüentes. O corpo se desgastava. A cada 5 km fazíamos uma parada. O sol baixava. O silêncio do lugar era ensurdecedor. Só havia o ranger das correntes e o barulho dos pneus singrando a areia. De repente mais um belo pôr-do-sol. Mais alguns minutos e a noite nos engolia. Pedalamos alguns quilômetros até que ao longe avistamos uma torre com uma pequena luz vermelha. Só podia ser lá. Era nosso farol! Uma energia nos contagiou. As pedaladas se tornaram mais fortes. Já de noite, estávamos chegando à sonhada e desejada São Romão. Paramos no primeiro estabelecimento. Comemos e bebemos quase de tudo. Logo um senhor, funcionário da prefeitura nos encontrou. Nos deu parabéns e começou a nos contar como todos ali nos aguardavam ansiosamente. Uma felicidade tomou conta de nós. Logo ele nos levou à pensão cujo dono é o relações públicas da Prefeitura. Que recepção! Ele ficou encarregado pelo prefeito em nos dar toda a assistência. É de sua família a pensão. Trata-se de uma construção da década de 30 muito bem preservada. As grandes salas de almoço e visita lembram uma casa de fazenda. Os ladrilhos hidráulicos no chão formando belas figuras são o testemunho de quando as coisas eram feitas para durar.

Lavadeiras em São Romão

Estávamos exaustos, mas ainda tínhamos um compromisso naquela noite. Encontrar D. Lita, a responsável por acolher e coordenar o trabalho dos acadêmicos de medicina no internato rural que funcionou por lá 10 anos ininterruptamente. É chamada carinhosamente de mãe preta por todos que lá passaram. Realmente é uma pessoa especial. Apesar de estar exausto a conversa que tivemos estava tão agradável que ficamos a prosear até altas horas. Ela ficou de nos mostrar o lugar e as pessoas no dia seguinte. Ao amanhecer pulamos da cama e fomos para a margem do rio tentar conseguir boas imagens. A prefeitura colocou a nossa disposição uma caminhonete e um motorista, que levou-nos aos lugares mais belos. Neste dia percorremos mais de 300km dentro do município de São Romão.

Andarilho Sebastião

O Andarilho- Primeiro fomos à Vereda do Escuro. Tida como a mais bela, é um lugar estonteante. A água de cor quase negra é cristalina. Pode-se ver cardumes de peixes a uma boa distância. Ali perto vive um andarilho que há 7 anos chegou neste local e resolveu ficar. Tido como louco (achei esta atitude bastante sana!) vive numa casinha de pau-a-pique que ele mesmo construiu a uns 100m da margem da vereda. É interessante o verdor da sua hortinha. Enquanto toda a vegetação ao redor estava seca a sua produzia alguns alimentos, e o principal: plantas que eram usadas para espantar os insetos (sobretudo as formigas), que em seu delírio eram responsáveis por todos os males. Entre estas havia hortelã pimenta, tipi, fumo.

Casa do Andarilho Sebastião

Trazia enroladas em seu corpo folhas destas plantas. Chegou a nos dar algumas destas para que pudéssemos colocar em caixas d'água de BH e assim espantar as formigas. Seguimos margeando o córrego que se forma a partir da vereda, no caminho, de mais de vinte quilômetros, encontramos belas paisagens. Piscinas naturais, grandes veredas com mais de dois quilômetros de extensão, animais diversos (araras, tucanos e até veados). Andando com a máquina a postos, na caçamba da D-20, sentíamo-nos em um verdadeiro safári. Finalmente estava prestes a realizar meu sonho: encontrar o mítico Urucuia. Paramos o carro e caminhamos por cerca de vinte minutos. No caminho, um martim pescador quase pousou em nós. De repente avistamos o rio, belo, de cor verde, com suas matas ainda preservadas.

Vereda do Escuro

Chegamos bem no encontro das águas. Ali a água do córrego Escuro, de cor negra, se encontra com a do Urucuia. Naquelas margens ainda vivem muitos animais, até mesmo onça pintada ainda se encontra por lá. Acredito que a região se manteve intocada por sorte. Um grande latifundiário era dono de quase toda a São Romão. Provavelmente guardou este pedaço para explorar no futuro (ainda bem que não durou o bastante!). É uma área que merece ser um parque. São Romão tem uma característica que permitiu que ficasse isolada e conseqüentemente o "desenvolvimento" não chegasse tão fácil. É uma "ilha" em pleno sertão mineiro. Quatro rios formam seus limites. A leste o São Francisco, ao sul o Paracatu , ao norte o Urucuia e a Oeste o Ribeirão Conceição. Só se chega lá de barco. Isto também segundo relatos coloniais propiciou que o lugar se tornasse um refúgio para os homens que buscavam aventuras extra conjugais....   À tarde fomos percorrer uma outra direção, em busca de imagens das pessoas dali. Conseguimos encontrar pessoas vivendo com parcos recursos, porém aparentemente saudáveis (ao contrário do que se imagina) e livres.

Tijolos artesanais

As crianças brincavam. As mais velhas chegavam de ônibus vindas da escola. As casas lembravam ocas indígenas. De barro recobertas com folhas de Buriti. Os homens fazendo tijolos, tudo manualmente, nos emocionou.Tinham de buscar água numa carroça há mais de dois quilômetros dali. Também demos carona a três carvoeiros. Víamos apenas seus olhos e dentes. Os corpos e roupas estavam totalmente enegrecidos. Vida difícil! Ao mesmo tempo em que nos dava uma revolta ao saber que estes homens estão destruindo um lugar único e que dificilmente se recuperará, você os perdoa, pois sabe que não lhes foi dado oportunidade melhor. Logo o sol se pôs e uma linda lua cheia nasceu no sertão.

Luar no Sertão

Voltando no tempo - Esta noite nos serviu para duas coisas: discutirmos sobre o verdadeiro conceito de desenvolvimento e de felicidade. Além disso, estávamos diante de um novo impasse. O caminho que imaginávamos, cruzar um trecho de 100km atravessando o Rio Urucuia rumo a cidade do mesmo nome não poderia ser realizado. A estrada não recebia manutenção há anos (o que em outras palavras significava grandes areais) além do fato de não haver mais ponte para transpor o rio (dependeríamos da sorte para encontrar um canoeiro). Tínhamos apenas dois dias para tentar alcançar o Parque Grande Sertão Veredas. O único caminho seria dando uma volta de 140km. Resolvemos fazer algo que não pretendíamos. Colocar nossas bikes num ônibus. O amanhecer foi um espetáculo. Fizemos um tour pela cidade. É impressionante o lugar. Ainda é rico em construções, porém infelizmente nenhuma encontra-se tombada pelo patrimônio histórico. Fotos não faltaram. Conversamos com um pescador que fabricava uma rede no quintal de sua casa. Disse que a pesca ali estava muito ruim. Esta rede seria vendida em outro lugar. Caminhando um pouco mais chegamos ao local onde existira a forca da cidade. É um largo no qual existe um pé de tamarindo considerado um dos mais antigos do estado. O tamarindo é realmente um fruto delicioso com seu sabor azedinho e um gostinho de terra (verdade!). As ruas estreitas com casario localizado às margens do rio lembra um pouco Parati. Na verdade estes lugares se ligam num tempo em que ouro e diamantes transitavam pelo Rio São Francisco e das Velhas, percorriam trilhas pelas serras do Espinhaço, Mantiqueira e do Mar, chegavam aos portos do Rio e de Parati e finalmente sustentavam os impérios europeus, tudo a custo de muito suor e sangue. O que mais me impressionou foi ler o relato de Richard Burton sobre o lugar, escrito há 150 anos, no qual esta cidade ainda se mostra muito parecida. É realmente como se tivesse retornado no tempo.

Sertão sem fim- No fim do dia partimos tristes deste paraíso. Pegamos o ônibus que atravessou por áreas bastante ermas e chegamos a Riachinho. É um lugar completamente diferente de São Romão. Já sofre bastante influencia de Goiás. É uma área de fronteira agrícola. Suas ruas largas cobertas de um pó vermelho mostram uma cidade nova. Uma longa avenida cheia de canteiros e com uma forte iluminação contrasta com tudo isso. No dia seguinte partimos em direção ao parque. Porém logo ao sair percebemos que isto não seria possível. Achávamos que não existia nada pior do que pedalar na areia. Porém isto não era verdade. Costelas na estrada impediam que pedalássemos. Digo, por toda estrada! Tentávamos desviar delas, porém esta tarefa era impossível. Logo percebemos o porquê disto. Caminhões trafegavam em alta velocidade sobre um terreno tão ruim que produzia ainda mais costelas. Parecia que estávamos pedalando sobre cadeiras elétricas. A cada quilômetro tínhamos que parar e ajustar os alforjes. O bagageiro do Paulo quebrou e tivemos que fazer uma improvisação para continuar. Nossa velocidade média era de 5km/h! (a mesma de que se tivéssemos caminhando). Nossos planos de alcançar o Grande Sertão Veredas se foram, pois faltavam 90km até lá. Nesta velocidade não conseguiríamos chegar. Então, num trevo, optamos por seguir em direção a Arinos que ficava a 50 km de onde estávamos. Foi uma escolha difícil, porém a única que dispúnhamos já que impreterivelmente deveríamos estar no ônibus que partia de Brasília no dia seguinte.

Ninhal das Araras

Numa destas paradas para ajustar o equipamento, encontramos alguns meninos que ficaram nos olhando com se fôssemos de outro planeta. Vimos algumas araras nos sobrevoando e não hesitei em perguntá-los se sabiam onde havia um ninhal delas. Logo veio a resposta: - Moço, elas vivem no quintal lá de casa! Isto nos bastou. Desviamos da estrada e seguimos os meninos até sua casa por uma pequena estradinha. Logo atrás do curral ficavam dois grandes Buritis que estavam carregados de araras! Foi maravilhoso. Consegui tirar uma bela foto. Valeu o dia! Agradecemos e logo retornamos ao nosso calvário. O Paulo estava bastante exausto. Para piorar não vimos um vespeiro e logo elas picaram nosso amigo. A dor era intensa e pela primeira vez utilizei o kit de primeiros socorros. Depois deste fuzuê, seguimos em frente. A tarde caia e as pedaladas se tornavam cada vez mais difíceis. Ao longe avistamos uma serra. Dez dias, 500 quilômetros pedalados. Areia, costelas, calor e cansaço. Estávamos chegando ao nosso ponto final: Arinos, com uma sensação quase indescritível. Estávamos no limite físico, porém nossas mentes estavam livres. A felicidade era contagiante. Nós do Projeto Paralelos enfrentamos este desafio pelo sertão mineiro conseguindo alcançar a maioria de nossos objetivos que eram registrar e vivenciar um pouco das belezas naturais e culturais desta região, comprovando o que disse Guimarães Rosa: "O sertão é do tamanho do mundo..." Apoio: material fotográfico cedido pela Universe (em Belo Horizonte) e peças de reposição para as bikes cedidas pela Import Bike (em Conselheiro Lafaiete).


O Projeto Paralelos visa registrar a natureza e as culturas humanas no diversos confins da terra sob uma nova ótica. Para tal foram escolhidos os paralelos da Terra como linhas guias. Em um único paralelo pode-se ter uma enorme diversidade que justificaria por si só este detalhamento.

DANIEL KNUPP AUGUSTO, 23 anos, estudante de medicina, fotógrafo de paisagens naturais, ciclista e montanhista. Integrante da expedição Aconcágua (1999), atualmente realizando registro fotográfico das paisagens mineiras, em especial das montanhas.
PAULO ELIAS BEDRAN JÚNIOR, 23 anos, administrador, MBA Executivo pela FGV. Idealizador do Projeto Históricas das Gerais, planejou e executou a 1a etapa deste projeto. Atualmente participa da equipe do Projeto Paralelos, responsável pela logística, planejamento de suprimentos e registro escrito das expedições.
PAULO MAGNO DO BEM FILHO, 25 anos, médico e fotógrafo, Residente em Patologia Clínica no HC/UFMG. Já participou de inúmeras expedições: Amazônia e Monte Roraima(1996), Pantanal (1997), Vale do Peruaçu(1998), Aconcágua (1999), etc. Percorreu a pé o interior de Minas Gerais como médico das Expedições Spix&Martius e Estrada Real. Idealizou e participou da 1ª etapa do Projeto Paralelos: Equador.