Avenida das Américas
Uma viagem de bicicleta pela América Latina (realizada em 1992)
Escolher cruzar o continente americano como a viagem de estréia no cicloturismo foi uma decisão bastante ousada. No entanto, o simples fato de eu tê-la concluído mostra que o cicloturismo é uma atividade para todos, atletas preparados, aventureiros profissionais e gente comum. Optei pelo sentido inverso, EUA - Brasil, por dois motivos bem simples: precisava primeiro levantar a grana necessária para fazer a viagem. Poderia fazer isso também no Brasil, em um ritmo mais lento, mas ir para os EUA trabalhar também fazia parte da viagem. Em segundo, em uma travessia longa como essa, é sempre melhor terminar em casa. Não sabia nada sobre viajar de bicicleta. Para ser sincero, não sabia nada sobre bicicletas que não fosse pedalar. Foi nos Estados Unidos, enquanto trabalhava como garçom e entregador de pizza, que aprendi sobre os modelos, os equipamentos e os acessórios. Essa primeira fase, que eu estimara não durar mais que um semestre, acabou levando 11 longos meses.
A bicicleta escolhida foi uma híbrida da japonesa Bridgestone, combinava características das montanheiras com as de corrida. Quatro alforjes, pochetes complementares, barraca, roupas, material de acampamento e uma infinidade de itens que lotaram rapidamente minha capacidade de carga.
Tinha então pela frente 14 fronteiras internacionais a serem vencidas. Já na primeira ficou claro o caráter espontâneo e descontraído de uma cicloviagem. Sem saber muito bem por onde ir, acabei entrando na estrada exclusiva para carros (freeway) e segui junto com eles até a cabine da imigração. A cena deve ter sido a mais inusitada possível para aquele atendente da aduana, carro a carro ele ia checando os documentos e autorizando a passagem. De repente, ele me vê ali em uma bicicletinha toda carregada. Fui na maior cara de pau achando que o cara fosse me mandar voltar imediatamente, mas qual não foi a minha surpresa quando ele, de dentro da casinha envidraçada, acenou freneticamente com as mãos para que eu seguisse adiante o mais rápido possível. Bem-vindo ao México!
O grande território que um dia abrigou o império Asteca me consumiria quase um mês de viagem. Adorei o povo, a cultura, a música, a culinária e a história mexicanas. Apesar de ser o país latino mais distante do Brasil, o México acabaria sendo o mais parecido conosco. O deserto da Baja Califórnia foi o primeiro desafio. Uma região belíssima, uma península na costa oeste de onde tomaria um ferry-boat para o México continental.
Segui em direção a megalópole Cidade do México, capital do país. Minhas noites já vinham sendo passadas nos mais diferentes lugares, de escolas a igrejas, passando por pequenos hotéis, casas de família e até uma ambulância. Na Cd. do México resolvi tentar a embaixada brasileira, e não é que deu samba! Fiquei 4 dias alojado no Centro de Estudos Brasileiros, um órgão ligado à Embaixada. Além da fervilhante cidade, com a parada obrigatória no gigantesco museu de antropologia, outro passeio imperdível é a visita ao complexo de Teotihuacan, 60 quilômetros distante do centro, onde estão as pirâmides do sol e da lua. A capital mexicana foi construída sobre a capital asteca Tenochtítlan, o que foi uma pena já que as cidades astecas eram conhecidas por sua plasticidade arquitetônica e avanços urbanísticos como água e esgoto canalizados.
Para sair da Cidade do México resolvi tomar um trem até Oaxaca. Não só para economizar alguns dias de viagem mas também para curtir uma viagem ferroviária. Eu adoro trens!! (Infelizmente quase não temos linhas de passageiros aqui no Brasil) O sul do país tem uma forte presença indígena e o epicentro para todo viajante é a cidade de San Cristóbal de Las Casas, de onde se pode conhecer pequenos povoados onde praticamente não se fala o espanhol. Esta região foi a área de influência maia, que descia por quase toda a América Central. Aliás, falando em América Central, a pergunta que mais ouvi em relação a este trecho da viagem foi: não teve problemas com as guerrilhas? Logo concluí que esta foi a imagem que ficou desta estreita faixa de terra que abriga 7 países em aproximadamente 2500 quilômetros de extensão. O último grupo guerrilheiro em ação depôs suas armas e se transformou em uma agremiação política alguns meses antes de minha viagem começar, isso no ano de 1992. Portanto, encontrei uma América Central mais calma. Mas a associação entre a região e a luta armada faz realmente sentido.
Durante décadas diversos países centro-americanos estiveram envolvidos em guerras civis. Uma análise mais profunda sobre esta situação não cabe aqui nesta história, mas o que posso relatar do que vi, ouvi e li é que de um lado estavam nacionalistas, lavradores e a grande maioria da população jovem. Do outro resistiam ditadores sanguinários e espoliadores de seu povo, apoiados pelo governo estadunidense.
A não ser por Belize, um pequeno país voltado para o Mar do Caribe, espremido entre o México e a Guatemala, falante do inglês e com a população predominantemente negra, passei por todos os países centro-americanos.
Não pretendia passar por Honduras, mas quando cheguei na fronteira El Salvador - Nicarágua, uma fronteira molhada, ou seja, para se cruzar de um país ao outro era necessário atravessar o Golfo do Fonseca, acabei perdendo o último barco daquele dia.
Dando uma olhada no mapa descobri que poderia contornar por Honduras, tirando apenas uma casquinha daquele país. E foi o que fiz...
Chegar ao Canal do Panamá me encheu de alegria e expectativa. Alegria por estar cada vez mais perto de casa e expectativa pois ainda não sabia como faria para chegar até a América do Sul. A rodovia Panamericana tem um hiato entre Panamá e Colômbia. Simplesmente a estrada acaba alguns quilômetros ao sul da capital panamenha retomando apenas a partir de Bogotá.
Os motivos não são lá bem explicados. Uns dizem que é por causa de um pântano gigantesco que inviabiliza e encarece qualquer intervenção viária na região. Outros alegam que o governo norte-americano faz de tudo para dificultar a construção de modo a não facilitar para o tráfico de cocaína em direção aos EUA. Enquanto nada se resolve, a América Central fica desconectada da América do Sul. Depois de muito tentar uma carona em navios cargueiros e veleiros que aguardavam para cruzar o canal, acabei optando por um vôo até a cidade colombiana de Medellín, onde cheguei 40 minutos depois. Colômbia foi uma passagem rápida. Não sintonizei muito com a energia do país e logo me vi me aproximando rapidamente da fronteira equatoriana. O Equador, apesar de pouco conhecido de nós brasileiros, talvez ofuscado pelo Peru e sua Machu Picchu, é um país interessantíssimo e com uma valorosa diversidade cultural.
Vale a pena conhecer Otavalo e seus curiosos habitantes: todos deixam crescer os cabelos negros e lisos, que levam sempre em tranças, usam uma calça branca e um poncho azul marinho. São extremamente orgulhosos de suas tradições e também bons comerciantes. São conhecidos como otavalenhos.
A capital Quito é uma graça com sua arquitetura colonial e ruas estreitas do Centro. Bom para quem quer aprender espanhol. Existe um esquema na cidade em que você pode ficar hospedado em uma casa de família e freqüentar um curso de espanhol. Assim, além de aprender a língua, ainda acompanha os hábitos de um dia-a-dia equatoriano.
Ao sul de quito, já a caminho do Peru, fica a simpática cidade de Cuenca, também de traços coloniais com uma grande igreja de duas torres na praça central. Em Cuenca acabei conhecendo o grupo Hare-Krishna local e me hospedando em seu sítio. Não que eu seja da religião, aliás não sou desta nem daquela, mas o encontro inusitado foi interessante e reconfortante. Estava mesmo precisando dar uma parada no ritmo da viagem e ficar de papo pro ar por uns dias. E a culinária Hare-Krishna também é uma delícia. Para entrar no Peru desci das montanhas onde estava e permaneci no litoral até a chegada na capital Lima. O país ainda vivia o clima nervoso dos ataques do grupo Sendero Luminoso. Dias antes de minha chegada na cidade, o Sendero tinha explodido um carro bomba em um bairro residencial. Havia uma forte presença militar nas ruas.
Desta vez me abriguei em um albergue da juventude e aproveitei a companhia de um viajante alemão com quem dividia o quarto para dar uma volta na cidade. Não muito para se ver. Meu desinteresse pela cidade aliado à vontade de voltar para estrada acabaram por ajudar na decisão de ir embora na manhã seguinte, que prometia o início da grande subida para o Altiplano Andino. Mas não seria bem assim...
Inspirado pelos hábitos alimentares dos últimos encontros, aproveitei a proximidade de um restaurante Hare-Krishna para provar novamente o tempero oriental. Foi neste restaurante que conheci Luis Carlos, um professor de Tae Kwon Do que tinha um jeito muito parecido com o meu. Ele já havia feito algumas viagens de bicicleta no Peru e quando viu a minha parada na entrada do restaurante voltou para falar comigo. Desse encontro nasceu uma boa amizade e acabei ficando 10 dias na casa dele, conhecendo sua família e conversando muito sobre o Peru e a América Latina.
Luis Carlos me acompanhou até a saída de Lima de onde parti em direção a cidade de Arequipa, primeira parada antes da subida aos Andes. Até chegar no Altiplano foram quatro dias de subidas ininterruptas. Dormi ao relento, em uma igreja abandonada, em um povoado minúsculo onde encontrei quase todos bêbados comemorando uma data festiva qualquer. O frio durante as noites era tão forte que as garrafas d'água amanheciam sempre congeladas. Minha altitude ficou marcada na agenda em letras garrafais 4600 METROS!!! Cruzei para a Bolívia margeando o grande lago Titicaca, sagrado para os povos que um dia dominaram esta região. Minha primeira noite foi na cidade de Copacabana. Pois é, muita gente não sabe, mas o nome da famosa praia carioca vem da padroeira da Bolívia. Diz a história que certa vez naufragou na costa do Rio de Janeiro um barco de marinheiros bolivianos. O grupo levava uma imagem da padroeira que acabou sendo deixada naquela praia onde logo depois se construiu uma capelinha para abrigá-la. Assim, a santa batizou a praia que por sua vez batizou o bairro.
Minha primeira noite foi em Copacabana, assim como a segunda e a terceira. Só consegui sair na manhã do terceiro dia pois a cidade foi atingida por uma nevasca histórica. As saídas ficaram interditadas e ninguém conseguia chegar ou partir. Com tanto frio e sem uma proteção adequada para a neve, acabei tendo a idéia de comprar no mercado público algumas folhas de coca para mascar. Uma das conhecidas propriedades da planta era seu poder de aquecer o corpo. Acontece que eu, sem querer perguntar a ninguém, acabei não sabendo mascar como se deve. Não são só as folhas que fazem o efeito e sim a sua combinação com um ingrediente feito das cinzas de uma outra planta e que vem na forma de uma massinha. Sem ela, tudo o que se consegue é uma pasta verde amargosa e grudenta na boca. E foi só isso que eu consegui, fiquei duas horas mascando e fazendo caretas por conta do horrível gosto das folhas de coca. Acabei desistindo e fui comer uma macarronada no primeiro restaurante que apareceu na minha frente. Um vez amenizada a tempestade, consegui seguir para La Paz. Ainda passei pelas cidades de Sucre e Potosi antes de atingir a fronteira argentina. A vontade de chegar já era grande, a saudade me matava e eu, há 4 meses na estrada, somado aos 11 que fiquei nos Estados Unidos, não via a hora de rever minha família e amigos.
Dentro do território argentino ainda pedalei por 5 dias até chegar na cidade de Tucumán. Lá descobri que um trem sairia no dia seguinte para Buenos Aires. Minha chance de outra grande viagem de trem que me deixaria na bela capital portenha.
A viagem durou 25 horas, entre paradas, quebras e atrasos. Cheguei moído e exausto em Buenos Aires, onde acabei ficando por dois dias até pegar o ferry-boat que corta a boca do Rio da Plata em direção ao Uruguai. No país vizinho ao Rio Grande do Sul foram apenas 3 dias de pedaladas até chegar a Chuí. Chuy e Chuí são cidades geminadas onde Brasil e Uruguai se misturam. Foi assim que voltei para o seio da pátria amada Brasil. Pedalando entre as ruas de uma mesma cidade. Mais informal não poderia ser. Aliás, repetia a primeira fronteira quando saí dos Estados Unidos sem carimbar meu passaporte na imigração mexicana. A data de chegada ao Brasil não poderia ser mais simbólica: sete de setembro. Dali para o Rio de Janeiro foi um pulo. Passei por Porto Alegre, Santos e Parati, onde parei 48 horas para ajustar o cronograma. Apesar de ser uma viagem com muito pouco planejamento, a data de chegada havia sido meticulosamente agendada, ou melhor, o dia da semana: um sábado. Por isso a espera em Parati, um pouco menos de 400 quilômetros do Rio.
E foi assim que cheguei, em um sábado. Estava terminada a viagem. Se alguém me perguntasse se valeu a pena, teria a resposta na ponta da língua, pois é só quando se chega ao fim que a gente percebe o quanto foi importante, o quanto foi enriquecedor, o quanto foi divertido. Agora eu tinha algo que ninguém poderia tirar, as recordações. Valeu a paciência em saber esperar passar o mau tempo e não desistir. A tolerância e a importância de ouvir e observar. Valeu pela boa vontade. Valeu pela alma aberta! Valeu por ter experimentado. Valeu por ter feito. Ao todo fiquei 16 meses fora de casa, 11 deles trabalhando em L.A. e os outros cinco atravessando o continente. Tendo a bicicleta como eixo, acabei por utilizar todos os meios de transporte. Naveguei em transatlânticos, sacolejei em vagões de trem, peguei caronas em camionetas e carretas, andei a pé e de avião. Experimentei estações do ano, linhas do tempo, sotaques e temperos. Quatorze fronteiras, quinze países, 83 cidades em 23 semanas, 163 dias percorrendo milhares de quilômetros. Nas longas horas pedalando nas estradas, peguei o hábito de travar discussões comigo mesmo. Afinal, era o único ali para conversar. Os temas variavam de acordo com a paisagem e com o estado de espírito. Os quilômetros sem fim me fizeram desenvolver a paciência (um pouco mais, pelo menos), a viagem solo me ensinou a tolerância, que é se colocar no lugar do outro, pensar como o outro. Sozinho em lugar desconhecido, dependia mais do que nunca dos outros, era preciso aprender a ouvir, a prestar atenção, principalmente para não me passarem a perna. Dormindo cada dia em uma cama diferente, pratiquei e, mais que tudo, desenvolvi a flexibilidade e o poder de adaptação, qualidades inatas ao homem mas tão pouco exercitadas na vida moderna.
Agucei a observação, treinei a percepção, o olhar. Conheci lugares incríveis, outros sem sal, me meti em enrascadas, fui assaltado, ganhei irmãos, dormi em delegacias, postos de gasolina, ambulâncias, casas de família e bons hotéis. Passei dias comendo apenas batata, tomate e arroz, atravessei desertos, nevascas e cordilheiras, mas cheguei intacto para poder narrar o que vivi. Está aí um bom motivo para se viajar, ter boas histórias para contar aos netos. Hoje, aos 33 anos, olho para trás e vejo esta viagem como um marco divisor em minha vida. Me espanto de tê-la realizado com apenas 21 anos, mas talvez tenha sido, para mim, a idade certa. Conheça toda a história no livro Avenida das Américas - uma viagem de bicicleta pela América Latina. Visite https://cicloamericas.wordpress.com/ e saiba mais.
Carlos André Ferreira - Formado em jornalismo e fotógrafo profissional, Carlos André é um carioca de 33 anos que não consegue viver sem ter uma viagem em vista. O Avenida das Américas, lançado em dezembro de 2003, é seu primeiro livro. Na obra, o autor buscou compartilhar com os leitores a incrível aventura de cruzar o continente americano montado em uma bicicleta. Carlos André traz neste livro de estréia a emoção de uma viagem solo com uma linguagem informal e gostosa de ler. Como fotógrafo, não abandonou a paixão pelas viagens. Suas três exposições retratam as visitas que fez ao Japão, África do Sul e Cuba. |