| Por Eliana Garcia |
Há bastante tempo que ouvíamos falar do Caminho da Luz. Mas tudo o que sabíamos eram informações gerais, ou seja, que o caminho era em Minas Gerais e terminava no Pico da Bandeira, e só. Pesquisando mais na internet, para nossa surpresa, encontramos pouquíssimos relatos de viagens de bicicleta por este roteiro. Entramos em contato então, com dois colegas cicloturistas, que já tinham feito o caminho, mas a pé. A resposta não foi muito animadora, ambos foram categóricos: melhor fazer a pé! Entramos em contato com a organização do Caminho pra tirar a dúvida, mas não houve tempo hábil para a resposta, já estávamos de partida, pois tínhamos já marcadas algumas palestras que daríamos numa cidade ali da região.
Saímos um pouco preocupados, haveria trechos de trilha single track? Seriam as subidas intransponíveis? Porque, dica de cicloturista temos sempre que levar em conta. Ninguém repara tanto nas subidas e pedras do chão como um cicloturista... Pra quem passa de carro o chão é sempre liso e as subidas só são percebidas quando são serras enormes. Ficamos com a pulga atrás da orelha, lembrando do conselho dos amigos, mas mesmo assim resolvemos levar as bicicletas e pagar para ver. Nosso ônibus partiu de São Paulo com destino à cidade de Alegre e nós saltamos em Espera Feliz. Pode não ter nada a haver, mas viajar para lugares com estes nomes me dava uma ótima sensação, um pressentimento de que estávamos para começar uma viagem muito boa.
Espera Feliz tem esse nome por que ali paravam tropeiros e outros viajantes para se reabastecer de caça e água. Por ser próxima do Rio de Janeiro e Espírito Santo, era um ponto de intersecção de várias rotas que vinham desses estados. E parece que até hoje permanece assim, pois por coincidência ou não, acabamos passando várias vezes por esta cidade, a espera de ônibus entre as cidades vizinhas. Porque além da paixão pela bicicleta temos também a paixão pelo montanhismo e não poderíamos deixar de fazer a travessia do Pico da Bandeira a pé. Isto nos forçou a pegar vários ônibus entre as cidadezinhas. Foi uma logística um pouco complicada, pois além de levar toda a tralha de bicicleta tivemos que levar também os equipamentos de caminhada, camping e cozinha. Além disso, tivemos que equacionar onde largar as bicicletas enquanto fazíamos a caminhada e onde deixar os mochilões enquanto fazíamos a pedalada.
Não tínhamos necessidade de definir todos estes detalhes com antecedência então não planejamos muito e deixamos para resolver esta questão por lá mesmo.
Começamos pela travessia a pé, porque para nós ela exigiria mais fisicamente do que a viagem de bicicleta. Assim, preferimos encarar a caminhada ainda zerados de cansaço. Enquanto isso as bicicletas nos aguardavam na cidade de Carangola, onde mora o Albino Neves, criador e mantenedor do Caminho da Luz. Aliás, o Albino é um capítulo à parte. Imaginávamos, como o criador de um caminho de perigrinação, um cara compenetrado e calado. E nos surpreendemos totalmente. É um figuraça,super falante e animado, com uma energia contagiante. Além de ser um aficionado mountain biker.
Ele nos garantiu que o Caminho da Luz era cem por cento pedalável e reservou alguns dias de sua agenda para nos acompanhar de bicicleta. Foi muito legal para nós porque ele conhece cada pessoa do caminho e sabe tudo sobre a história da região. Claro que nas descidas ele sumia num desvairado down hill e só voltávamos a nos encontrar mais para frente.
1º dia - Tombos a Catuné
O ponto inicial do percurso é a cidade de Tombos. Pensamos conosco, sugestivo nome para se começar uma viagem de bicicleta! Por sorte o nome tem relação com outros tombos que não de bicicleta. É por causa de uma enorme queda dágua, quase dentro da cidade. O lugar é bem especial, com as construções antigas de uma das primeiras usinas hidrelétricas do país, que continua ainda em funcionamento. A cachoeira impressiona pelo grande volume dágua, mesmo estando na época da seca.
Saindo de Tombos logo pegamos uma estrada de terra e em poucos minutos já estávamos entre fazendas e sítios, com um visual maravilhoso. Avistamos as serras que iríamos atravessar neste e nos próximos três dias. Mas o melhor era não sofrer por antecipação e deixar para pensar na subida só na hora que ela chegasse. De longe as subidas sempre parecem piores do que são na realidade. Logo deixamos esta estrada de terra, digamos, principal, e adentramos por estradinhas de fazendas. Essa é uma marca registrada deste caminho, viajamos quase sempre dentro de propriedades particulares, com pouco ou nenhum movimento de carros. Pra quem procura isolamento é o paraíso. Passamos por longos trechos de mata, com a copa das árvores tampando o céu e depois novamente saímos entre pastos e plantações de café. São poucos moradores pelo caminho e a maioria tem uma plaquinha na frente da casa com os dizeres Família Iluminada. O que significa que você pode parar ali que vai ser bem recebido. Seja para tomar uma água, descansar ou simplesmente bater um bom papo.
Ao final deste primeiro dia chegamos a Catuné, uma pequena e simpática vila, onde não há pousadas e a hospedagem é feita em casas de famílias. Aqui é imprescindível estar com sua credencial do caminho. É sua garantia para eles de você ser realmente um peregrino. Após uma pedalada dura, ser recebido em casa, com o conforto e o carinho de um lar é luxo impagável. Fiquei até com vergonha do quanto comemos no jantar e no café da manhã. Era tudo caseiro e produzido ali mesmo.
2º dia - Catuné a Faria Lemos
Nossa jornada no segundo dia nos levou até a cidadezinha de Faria Lemos. Este dia foi bem puxado em termos de subidas. Mas foi um visual atrás de outro, de encher os olhos de qualquer um. Passamos por uma serra onde se avista o bonito Vale do Silêncio e depois pela Pedra Dourada, que lembra muito a Pedra da Gávea carioca, sendo, pelo que informam na região o segundo maior bloco de granito do mundo.
Já mais para o final do dia passamos pela maior surpresa da viagem. A estrada faz uma curva acentuada, quase uma meia volta e de repente nos deparamos com uma cachoeira ao nosso lado. Enorme e imponente, linda mesmo. Incrível como não dá para ouvir o barulho dela antes, só quando damos de cara com ela. O nome não poderia ser melhor, Cachoeira da Surpresa. Mais alguns quilômetros e passamos um trecho sobre umas lajes de pedra ao lado de corredeiras do rio. Ainda bem que estávamos de bicicleta porque é o típico lugar que se você estivesse de carro iria pensar "nossa como ia ser legal passar de bicicleta por aqui..." Faria Lemos é também uma cidade pequena e simpática, com o pouco movimento restrito ao redor da praça. Mas com o cansaço batendo não há mesmo melhor opção do que o trio banho, jantar e cama.
3º dia - Faria Lemos a Caiana
No terceiro dia nos aguardava uma bela serra, a Serra dos Cristais. Era bela nos dois sentidos, tão longa quanto bonita. Lá de cima, em sua crista, avistávamos uma cadeia de montanha para cada um dos lados. Uma era a série de montanhas que tínhamos vencido nos dois últimos dias e a outra, a que iríamos vencer nos próximos dois dias. Orgulho ao olhar para trás e vermos tudo que já havíamos percorrido e humildade ao ver o que ainda tínhamos pela frente. Após descer a Serra dos Cristais desviamos o caminho para conhecer a cidade de Carangola e depois tocamos para o momento mais esperado da viagem, a trilha da Ernestina. Esta trilha é o pedal dos sonhos. Um dos lugares mais incríveis onde já pedalei. Imagine uma trilha beirando uma encosta de serra, um paredão para cima, do seu lado esquerdo, e outro para baixo, do seu lado direito, abrindo a paisagem para um mar de morros sem fim.
Uma faixa de uns dois metros de largura, onde pedalamos, é plana, possibilitando uma pedalada com segurança. Vamos circundando esta serra por 9km, entre árvores, nascentes e visuais. E o melhor é que não é permitida a passagem de carros, então o sossego é completo. Em alguns pontos a trilha está desfeita, necessitando que se carregue a bicicleta, mas nada muito radical. Algumas construções da antiga estrada de ferro e um pequeno túnel cavado na pedra dão um toque mágico ao local. Fiquei pensando que se tivesse ido até ali só para fazer este pedal já teria valido a pena. Saindo da Ernestina, ainda meio zonzos tentando assimilar tudo que vimos, seguimos mais poucos quilômetros até a cidadezinha de Caiana. Acabando de chegar fomos pra pequenina sorveteria, já famosa entre os caminhantes. Ficamos sentados na calçada, conversando com várias pessoas que se aproximavam curiosas, e claro, tomando a especialidade da casa, o sorvete de ovomaltine.
4º dia - Caiana a Alto Caparaó
No dia seguinte, o último da viagem, passamos pelas cidades de Espera Feliz e Caparaó. É um trecho curto, são cerca de 30km e pior das subidas já ficou para trás. Foi um dia para pedalar tranqüilo e saborear a paisagem que vai mudando conforme nos aproximamos das cadeias de montanhas mais altas, entre elas o Pico da Bandeira. E para acabar, digo acabar com as pernas do cidadão, uma última subida bem íngreme, já na chegada, dentro de Alto Caparaó. Como não poderia deixar de ser, a Igreja e o ponto final onde recebemos os certificados (a Pousada Serra Azul) ficam no local mais alto da cidade. Assim que chegamos Dona Alani nos recebeu como se estivesse com saudades, mesmo sem nos conhecer, e correu para passar um cafezinho, orgânico claro, produzido no quintal. Um brinde ao Caminho da Luz!
Cada viagem de bicicleta que faço é diferente uma da outra, mas o pensamento no final é o mesmo: como é bom fazer cicloturismo, não há jeito melhor de aproveitar a vida! Sobre os amigos que nos recomendaram ir a pé, na volta conversamos melhor com eles. Um tinha sido porque pegou muita chuva e ficou imaginando que seria inviável pedalar naquela lama e o outro foi porque achou que a pé traria mais introspecção, que seria uma melhor oportunidade de reflexão. Enfim não era nada com a dificuldade em si do roteiro. Seja a pé ou de bicicleta coloque este caminho na sua lista de lugares a se conhecer. Quando der aquela vontade de parar com tudo e fugir para um canto bem legal, onde vai ter contato com a natureza e paz de espírito, lembre do Caminho da Luz e vá correndo pra lá.
A travessia a pé do Pico da Bandeira
Foram três maravilhosos dias, cruzando o Parque Nacional do Caparaó, com o Pico da Bandeira bem no meio. Fizemos no sentido Espírito Santo Minas Gerais, que termina na cidade de Alto Caparaó, o mesmo local de término do Caminho da Luz. O relevo é mais íngreme do lado do Espírito Santo, por isso achamos melhor encará-lo subindo do que descendo. O Pico da Bandeira é propagandeado como o mais alto acessível do Brasil. Mas não se engane, toda montanha merece respeito e com esta não é diferente. Acessível não quer dizer moleza. Os ventos lá em cima são muito fortes e já pegou muita gente experiente desprevenida.
O frio e a neblina também são fatores que podem complicar a caminhada, por isso esteja preparado. A estrutura de acampamento do Parque Nacional é excelente e bem localizada. Iniciamos a caminhada na localidade de Pedra Menina e dormimos a primeira noite no Acampamento Casa Queimada. Dia seguinte subimos para o Bandeira e descemos até o Acampamento Terreirão. No terceiro e último dia descemos até Alto Caparaó. A principal dica é nunca vá num feriado, porque fica transbordando de gente.
Bike Luz
Pouco mais de um mês após percorrer o Caminho da Luz estávamos lá de volta, só que desta vez acompanhados por cerca de 50 pessoas. Era um grupo de várias regiões do país, entre São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Aproveitando a experiência da Abraluz (Associação dos Amigos do Caminho da Luz), que organiza as caminhadas coletivas todos os anos, com mais de 200 pessoas, fizemos uma parceria esta primeira coletiva de bicicleta o chamado Bike Luz. Havia opção de hospedagem em hotéis ou alojamentos (em escolas e clubes) e alimentação era feita com todos juntos. Um caminhão levava todas as bagagens, o que deu oportunidade para muita gente iniciante tomar coragem de viajar. Foi uma experiência sensacional, o grupo logo se entrosou e formou uma grande família, com todos cuidando uns dos outros. Os banhos de cachoeira, as paradas para lanche e fotos, tudo fica mais animado com um grupo de cicloturistas. Até as subidas ficaram mais fáceis de serem encaradas, conversando você se distrai e a subida acaba mais rápido. Anualmente o Bike Luz se repete no mês de julho.
Um pouco sobre o Caminho
- Caminho da Luz é cem por cento pedalável e os ciclistas muito bem recebidos em todos os lugares.
- O percurso está inteiramente sinalizado por setas amarelas. São 170km, de Tombos a Alto Caparaó. No início do caminho, você adquire a credencial e o livro guia com as distâncias entre os pontos de referência de cada dia.
- Para aproveitar bem todo o trajeto e sem correria, o indicado é fazer em 4 dias de bicicleta e reserve mais um dia para subir o Pico da Bandeira. Se quiser guia e jipe para subir uma parte do caminho reserve com a Agência Rastro de Luz.
- As subidas existem "aos montes" é claro, ou então não estaríamos em Minas Gerais, mas com uma boa dose de paciência e uma boa relação de marchas é possível encarar todas elas.
- A melhor época para ir é na seca (de maio a setembro), pois as estradas ficam com muito barro durante a época de chuvas.
- O Caminho passa por trechos bem isolados, se você pretende fazer a viagem solo esteja preparado psicologicamente.
- Não é necessário ter muita experiência em cicloturismo, uma vez que é um roteiro sinalizado, mas é aconselhável que não seja a primeira viagem de bicicleta, devido ao grau de dificuldade físico e técnico.
- Esteja auto-suficiente em termos de ferramentas e peças de reposição. A cidade que tem uma estrutura melhor de bicicletarias é Carangola (procure pelo Rodrigo, da Elite Bike).
- Vale muito a pena desviar um pouco do Caminho para conhecer locais como a Gruta da Pedra Santa e a Fonte da Água Santa, indicados no guia.
O que levamos
- Bicicletas Sundown Team 4000 (tamanho 21 para o Rodrigo e 19 para Eliana)
- 1 Par de Alforje e uma bolsa de guidão (com porta mapa) AraraUna para cada um
- 8 a 10 kg de bagagem cada (fora a água)
- kit de ferramentas, kit de primeiros socorros, kit de higiene, chinelo, agasalho, capa de chuva, calçado extra, duas mudas de roupa comum e duas de roupa de pedalar, lanchinho de trilha (barrinhas de cereais, castanhas e frutas secas), 2 litros de água cada um, tranca, sacos plásticos, máquina fotográfica e caderneta de anotações. (não é necessário roupa de cama nem toalha de banho)
Para saber mais sobre o Caminho da Luz: www.caminhodaluz.org.br
| Texto publicado na Revista Aventura e Ação |
Eliana Garcia, bióloga com especialização em Educação Ambiental. É fundadora do Clube de Cicloturismo do Brasil e fabricante dos alforjes Arara Una. Viaja de bicicleta há mais de vinte anos.