Quando decidimos deixar para trás a ideia de uma volta ao mundo com bilhetes aéreos para nos locomover utilizando bicicletas e a nossa própria força sabíamos o quanto as pessoas seriam receptivas com quem viaja dessa forma. Esse foi o fator decisivo.
Início da viagem na Holanda
A ideia foi do André depois de comprar o livro de um viajante brasileiro que tinha completado a volta dele em 2008 e por duas ou três semanas ele leu, releu, pesquisou sites de estrangeiros e assim viu que realizar uma volta ao mundo em bicicletas não era algo tão incomum. Homens e mulheres das mais diversas idades e países realizaram, estavam realizando ou ainda iriam começar uma viagem. Viagens de 1 mês, 3 meses ou anos.
Primeiro camping, primeira janta, primeiro dia de vida nova
Como fotógrafo freelancer ele tinha tempo para pesquisar e em silêncio resolveu digerir essa ideia. Deixou-a crescer e amadurecer antes de me perguntar. Ensaiava como falar, anotava prós e contras, fazia contas. Foram semanas com algo entalado na garganta e segundo ele, cada vez que eu chegava em casa era uma tortura.
No dia que esta dúvida acabou soltou um “tem algo que eu gostaria muito e que não quero me arrepender de não tentar antes da gente ter um filho. Vamos dar uma volta pelo mundo em bikes?”
Confesso que fiquei um pouco surpresa mas lembro que topei na hora. Logo quis saber mais e o André começou a mostrar tudo o que tinha compilado.
Acampamento na Holanda
Começamos a pesquisar clima, vistos e equipamentos. Imprimimos mapas e os espalhamos pela casa. Assistimos vídeos e esboçamos traçar rotas.
Pedalar assim nunca passou pela nossa cabeça. Nunca. A bicicleta ficou um tanto esquecida na nossa vida após a adolescência.
Ir devagar nos proporcionaria um contato com mais pessoas e de uma forma mais intensa do que se estivéssemos apenas utilizando meios de transporte movidos a motores e turbinas, além de ser mais barato e ecológico.
Café, companhia inseparável
Em suma, trocaríamos a certeza de termos algumas dores de cabeça com transportes pela certeza de que seríamos surpreendidos pelas incertezas que uma viagem em bikes proporciona.
Onde comeríamos, onde dormiríamos, para onde iríamos e quem encontraríamos. Trocamos sermos vistos como turistas para sermos enxergados e admirados como viajantes.
Nossa viagem pretende mostrar às pessoas que sair sem um plano pode ser bastante interessante.
Temos que tomar nossas decisões no momento e nos adaptar à diversas situações. São nessas horas que vemos a quantidade de gente disposta a ajudar.
Quando viajamos em bicicletas e as pessoas as veem carregadas é muito comum que queiram nos ajudar.
Em um dia pedalamos entre 40 a 150 km, entre 3 a 12 horas nas bikes e assim passamos por muitas pessoas.
Passamos por muitos lugares onde quase não passam estrangeiros e esse contato é um pouco mais autêntico que os que acontecem em locais turísticos.
Dia de churrasco na França
Dos lugares mais simples até aos mais sofisticados, as pessoas são curiosas e com um pouco mais de conversa nos chamam para um chá, pagam jantares, preparam banquetes e convidam para entrar em suas casas e até ficar nelas. Não sabemos se pelas bikes ou pela energia que temos, mas dessa forma acumulamos histórias.
Como vamos devagar e fazemos mais pausas o contato humano é multiplicado comparado a alguém dentro de um veículo que viaja 300km em um único dia, por exemplo.
Pedalando pelos campos de lavanda na Inglaterra
Conhecemos os pais dela e por todos esses dias nos sentimos em casa, sendo tratados como se fôssemos realmente da família. A despedida foi de muita emoção e eu não me aguentei e chorei muito até soluçar e com muitas lágrimas nos olhos dissemos adeus!
Tivemos durante uma semana na casa dos pais do Ugo, um francês com quem pedalamos juntos por um trecho do Caminho de Santiago na França. Foi uma semana de puro mimo da Chantal e do Didier.
Nos mostraram os lugares bonitos da região. Ela preparava tortas e jantares deliciosos e ele sempre muito atencioso queria mostrar de tudo na cidade. Da Boucherie ao amigo produtor de vinho.
Jardins de Versailles
E é assim, quando nos damos conta, estamos dentro da casa de uma família marroquina, iraniana, ou numa casa bem simples de uma família curda, uzbeque, montenegrina...
Fomos convidados para presenciar o sacrifício de dois cordeiros por uma família marroquina, aprendemos a cozinhar algumas receitas com famílias turcas, francesas, catalãs... A lista é bem grande.
São muitos os exemplos dessa gente que de alguma forma nos fazem ir adiante. Como retribuição compartilhamos nossa viagem com eles. Deixamos fotos, enviamos por correio e recentemente, para aqueles que não tem net ou que a dificuldade com a língua e escrita não nos fazem compreender o endereço, entregamos instantâneos.
E eles nos agradecem muito. É lindo ver a surpresa e a gratidão nos olhos e sorrisos dessas pessoas.
Pneu furado da Karla chegando em Bilbao
Sempre quisemos viajar pelo mundo e mais importante, sempre quisemos conhecer um pouco mais o dia a dia e a rotina dessas pessoas que poderiam ser muito bem nossos familiares ou amigos.
Gostamos de gastar um tempo só observando o ritmo das coisas. Hoje entendemos o significado e a importância da siesta, ainda mais com dias cada vez mais quentes. Nisso, acreditamos na importância de passar o dia fora de casa após o trabalho.
Fora de casa numa praça com os filhos correndo enquanto os pais conversam em um bar. Fora de casa em sociedade e não trancados dentro de um automóvel.
Caldeirada em Portugal
As fotos que publicamos no Facebook são na maioria fotos do telefone que nos foi dado uma semana antes da viagem. Quem nos deu, disse: “Para vocês se comunicarem com a família. Façam bom proveito.”
Com a fotografia queremos presenteá-los, homenageá-los e por que não fazer com que as pessoas olhem para o próximo com mais interesse e mais carinho, algo que sentíamos falta quando morávamos em São Paulo. Acreditamos que nossa sociedade carece desse zelo.
E assim estamos utilizando ele para, através das fotos, dizer aos familiares e amigos que estamos bem, cercados dessa gente que citei anteriormente.
Tem vezes que empurrar é a única saída. Marrocos
Compartilhamos da ideia do Christopher McCandless, um americano que largou uma vida confortável para trás para viver a vida. “Happiness is only real when shared” ou “Felicidade só é real quando compartilhada”. Nada mais verdadeiro.
As fotos funcionam como um pequeno recordatório para os textos que virão a seguir. São notas de viagem fotográficas para possíveis futuros livros e exposições. Outro objetivo dessas fotos é o de compartilhar nossa viagem de forma que quem as vê possa de alguma forma se inspirar.
Para entender um pouco mais as nossas motivações e nossas vontades, indicamos dois livros e seus respectivos filmes. O primeiro é o “Into the Wild” ou “Na Natureza Selvagem”, que conta a história do Christopher.
Com uma família marroquina. Temos muita saudade das sobrinhas e quando recebemos uma intimação para ficar, envolvendo café, comida boa e principalmente pessoas lindas e suas crianças, aproveitamos para ficar e matar a saudade da família.
Ele saiu para experimentar a aventura da sua vida e para encontrar algo que buscava. Encontrou tanto na natureza quanto no seu coração.
O que ele percebeu é que esses belos sentimentos e experiências são amplificados quando compartilhamos com alguém.
O outro se chama “Big Fish” ou “Peixe Grande e Suas Histórias” que entre outras coisas mostra o quanto podemos não conhecer alguém tão próximo e o quanto é importante passarmos histórias adiante.
Chantal e Didier são os pais do Ugo, que está ao vivo no Skype. Pedalamos com ele 4.000km antes de chegarmos à casa de seus pais
Quanto ao nosso caso, não podemos esperar pelo poder público fazer algo. É preciso mais união, colaboração. É preciso defender uma causa e lutar por ela. A utilização delas transforma as cidades que se tornam mais humanas. Elas são para as pessoas e isso deveria mudar em muitas cidades brasileiras.
As nossas histórias deverão ser contadas através de livros e exposições. Pensamos em dois livros com abordagens diferentes. Um com as fotos do telefone, num formato menor e mais acessível. O outro com a série de retratos. Também estamos produzindo bastante conteúdo filmado e já temos alguns HDs com uma produtora em SP. Já estamos nos mobilizando para encontrarmos apoiadores e patrocinadores para viabilizar a produção desse material. Tarefa nada fácil quando se está longe.
Não podemos nos esquecer também que estamos levantando mais uma bandeira para o importante movimento das bicicletas. Negligenciado pelos que comandam nosso país, ela é sim a solução não apenas ao caos instalado pela indústria automobilística mas também a solução para a crescente individualização da nossa sociedade. Felizmente temos lido notícias que nos dão esperança de que a coisa está mudando para aqueles que usam bicicletas.
Chantal e Didier cuidaram de nós como se fôssemos seus filhos
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Em Samarkand, Uzbequistão.
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Dias de muita subida pelo Quirguistão.
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Problema na coluna do André na China um dia antes de deixarmos a casa dos nossos couchsurfers. Não entendíamos nada que falavam e até hoje não sabemos qual medicação ele tomou nos 2 dias que estivemos por lá.
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Pela costa da Califórnia.
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Difícil encontrar sombra nas estradas da Baja Califórnia, no México.
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Baja Califórnia, México.
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Deserto na Baja Califórnia, México.
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Os meninos ouviram o André dizer que gostava de tamales (pamonhas) e vieram trazer 4 para nós. Uma forma que encontramos de retribuir o carinho das pessoas é entregar fotos. A cara das pessoas quando a foto instantânea começa aparecer não tem preço.
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Cochichando?!?!?! rsrsrs
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Karla e André Cerri
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Alguns dados
Países visitados: Holanda, Bélgica, França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Marrocos, Itália, Grécia, Albânia, Montenegro, Croácia, Eslovênia, Sérvia (visto de trânsito), Bulgária, Turquia, Irã, Turcomenistão (visto de trânsito), Uzbequistão, Quirguistão, China, Vietnam, Laos, Camboja, Tailândia e Estados Unidos, México, Guatemala e El Salvador.
Quilômetros pedalados: aproximadamente 25 mil.
Próximos destinos: Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai e Brasil.
Quilômetros a serem pedalados: cerca de 10 mil.
André Cerri - 33 anos, fotógrafo, é cicloturista desde 2012 quando começou a volta ao mundo em bikes.
Karla Silva Cerri - 33 anos, nutricionista também é cicloturista desde 2012.
Já percorreram 25 mil quilômetros desde que saíram de Amsterdam, onde começaram sua jornada. Dentre os destinos estão alguns países da Europa, Marrocos, Ásia Central, Sudeste Asiático, Estados Unidos e América Central. O que mais importa para eles são as pessoas que cruzam seus caminhos. Conhecer a vida real. O nome do projeto BikesAndSpices veio da ideia de que pedalando é possível conhecer mais dos temperos da vida e também provar sabores dos mais variados.
www.bikesandspices.com