Quando voltei para Yangon, capital de Mianmar, sabia que o sudeste asiático havia chegado ao seu fim para mim. Havia sido uma experiência engrandecedora, mas havia chegado ao seu fim. Era hora de mais uma grande mudança e eu já sabia que não seria pequena. Não era apenas uma alteração geográfica, mas também uma transformação completa de estilo de vida, religião, comportamento, raças, idiomas e clima. Numa definição minimalista: eu não veria mais olhos puxados e nem estátuas de Buda pelo caminho. De toda forma, o que vinha ainda pela frente era completamente novo para mim. Nunca havia estado na Índia e já havia ouvido relatos diversos, alguns bons e muitos ruins.
Ambos alimentavam minha curiosidade. A Índia que eu tinha em minha cabeça era de um país espiritualizado e composto por pessoas amáveis, apesar de imensa pobreza do país. Claro, que essa idéia estava longe da realidade. Era apenas a visão padrão que qualquer pessoa que um dia se interessou por yoga ou qualquer outra filosofia oriental teria. A verdade eu estava para descobrir. Saí de Mianmar da única forma possível, de avião. Voando, em poucos minutos eu já sobrevoava a planície alagada de Bangladesh e seguia para Calcutá. O vôo foi curto, mas suficiente para mudar por completo o cenário. Recordo-me do avião aterrissando em meio à uma imensa favela, o que me chamou a atenção.
Pensei: isto deve ser a parte mais pobre da cidade. Algum tempo depois eu já havia descoberto que aquilo era apenas o padrão Calcutá, que era uma imensa favela. Pior que isso, aquilo era Índia! Ainda no aeroporto já começou o problema que me seguiria pelo resto de meus dias no país: a mentira. O indiano na realidade não tem nada de espiritual, sereno ou amável, muito pelo contrário, ele é o mais picareta de todas as pessoas. Poderia escrever páginas e páginas sobre isso, mas resumindo, o indiano é um sujeito sem valores ou, pelo menos, com valores completamente distintos do que nós conhecemos.
O que isso significa? Significa que ele não vê problema algum em te enganar, em fazer todo um teatro para roubar seu dinheiro, em defecar pelas ruas, em cuspir em qualquer parede, em pegar algo que é seu e não devolver etc.. Não foi difícil perceber que toda a idéia que eu tinha da Índia era apenas uma criação ocidental e nada mais. Embora a realidade não fosse das mais agradáveis, eu não podia reclamar, estou viajando para ver o mundo com meus olhos, para fazer este tipo de descoberta. E diante de tantas descobertas, eu planejei uma curta estadia por Calcutá, a cidade que abrigou Madre Teresa e que abriga milhares de voluntários do mundo todo atualmente. Entretanto, antes mesmo de eu conseguir deixar a cidade, contraí alguma doença que, além de me levar ao banheiro diversas vezes, me levou também ao médico.
Nem havia chegado e já estava com problemas. Fui para o médico, tomei remédios e não melhorei. Fui então para outro médico e mais que novos remédios eu conheci a máfia do seguro de saúde do país. Para tirar o dinheiro do meu seguro eles não tiveram dúvidas, levaram-me para um bom hospital da cidade e me prenderam alí por 4 dias, o que foi suficiente para que eles fizessem inúmeros exames e injetassem muita coisa em meu sangue. Dias depois eu saí de lá não muito diferente de quando eu havia entrado, mas consciente de que nenhuma bactéria deste mundo poderia ter sobrevivido à tantos antibióticos.
Quando me senti um pouco melhor, segui em direção à Bangladesh, o país mais populoso do mundo. Com uma população semelhante à brasileira numa área menor que o Estado do Paraná, Bangladesh tem gente por toda parte. É difícil de acreditar, mas é verdade. A Índia já era tumultuada, mas Bangladesh conseguia ganhar. Havia gente por todos os lados, e sempre muita gente. Na principal estrada do país, uma única faixa de asfalto sem sinalização onde transitavam caminhões, ônibus, carros, carroças, motocicletas, bicicletas, vacas, cabras, macacos, velhos e crianças, não era um lugar agradável para se pedalar.
Não havia muita coisa para ser vista neste pequeno e pobre país, assim resolvi sair antes que as fortes chuvas começassem. Saí e escapei das chuvas de Bangladesh, que viraram notícias por matarem milhares e desabrigarem milhões. Mesmo assim as chuvas me pegaram na Índia. E aqui quando se fala em chuva, se fala em monsões, ou seja, quando a chuva começa não para mais por alguns meses. Eu cheguei justo na hora em que a chuva começou e depois disso raros foram os dias em que não choveu em meu caminho até o Nepal. Para complicar um pouco mais minha situação eu tinha que atravessar os estados mais pobres do país, o que significa dizer, gente morrendo de fome e de diarréia.
Com as chuvas fortes, essa situação apenas piorou, mesmo assim encarei o desafio e cruzei as regiões mais afetadas pela chuva sobre minhas duas rodas. Neste ponto, a miséria já havia tomado conta da paisagem. A população já havia perdido suas casas e moravam debaixo de sacos plástico na beira da estrada, bem, isto quando havia estrada, pois não demorei a descobrir que um longo trecho da estrada também estava sob água, transformando-se apenas num grande rio. Depois de tanta água eu cheguei à fronteira nepalesa e as inundações acabaram. Não apenas as enchentes, mas também a falta de educação, as mentiras, as fezes pela rua e todo o resto ficaram para trás. O Nepal era um outro país, diferente da Índia e com traços de sudeste asiático. Já entusiasmado com estas mudanças e com a possibilidade de descansar da Índia por alguns dias eu pedalei à Kathmandú, encarando as altas montanhas do país.
Tudo corria bem até um momento que já cansado e ainda me recuperando dos velhos problemas de saúde, meu corpo literalmente travou nas montanhas. Não conseguia mais me mover e mal conseguia falar. Uma situação inédita para mim, que me assustou. Minha sorte foi que um carro parou neste momento e me levou para Kathmandú, onde eu me recuperei e achei melhor dar um descanso de alguns dias para meu corpo. Estes dias de descanso mostraram um Nepal sensacional para mim. O país era muito melhor do que eu esperava. Mesmo estando na época das chuvas, o que não me deixou subir e nem mesmo ver nenhuma das famosas montanhas do país, a cultura local era bastante agradável e hospitaleira. Ainda debaixo de chuva, eu segui para uma outra bela cidade nepalesa, chamada Phokara, onde passei mais alguns dias, o suficiente para conhecer a região e conseguir a coragem necessária para retornar à Índia.
Sem opção eu desci as montanhas e segui em direção ao Estado de Uttar Pradesh, um estado particularmente populoso e famoso na Índia. Toda a paz que eu havia cultivado no Nepal acabou logo em que eu cruzei a fronteira. Era hora de respirar fundo e encarar os indianos balançando suas cabeças e os caminhões pintados com a frase: HORN PLEASE! (Buzine por favor). Desta vez já consciente do que me aguardava, me preparei psicologicamente para encarar as estrada do país e as buzinas em minha orelha, mas não foi o suficiente. Chegando em Varanasi, um indiano bateu em minha bicicleta com sua moto e quebrou meu bagageiro dianteiro. Agora sim eu estava com problemas. Precisava daquela peça para viajar e sabia que na Índia eu não encontraria mais que alguns pedaços de ferro retorcido e não conseguiria encontrar uma peça nova.
Assim, nesta cidade sagrada, onde passa o sagrado Ganges, eu fui atrás de uma sagrada solda. Mais que isso, de alguém que soldasse alumínio. O mais incrível foi que eu encotrei. Era um sujeito sentado com suas pernas cruzadas dentro de uma barraco minúsculo. Entreguei o bagageiro quebrado na mão dele e ele apenas acendeu o maçarico num cocô de vaca em brasa e tacou fogo no meu suporte. Não ficou bonito, confesso, mas funcionou por algum tempo. A esta altura a chuva já havia acabado e a minha situação já estava um pouco melhor. Foi então que encontrei um amigo brasileiro vivendo na Índia e passei uma semana com ele num ashram (algo como um retiro espiritual) e saí melhor de lá.
Segui para os templos tântricos do centro do país, depois Taj Mahal, Rajastão e finalmente Delhi, onde passei alguns dias para concertar os estragos que o país havia me causado antes de seguir em frente. Com tudo pronto eu pedalei direto para a fronteira, para deixar o país. Pedalei com gosto, sabendo que nada poderia ser melhor que deixar a Índia, mas sabendo que esta felicidade era contida, pois o que vinha agora era o Paquistão. Quando entrei no Paquistão logo vi minha situação mudar e toda a crença que eu carregava do país cair por terra. O Paqusitão não era assim tão perigoso e sua população era uma das mais hospitaleiras que eu já havia conhecido até então. Mais que isso os paquistaneses eram muito mais limpos e educados que qualquer indiano.
Foi um alívio para mim descobrir isso. E mesmo sob o estado de emergência, recém-declarado pelo presidente Musharraf, o país ainda continuava agradável. Estes problemas também não me impediram de conhecer e pedalar por quase todo o país, sendo apenas escoltado pela polícia local nas zonas mais perigosas. Entrei no Paquistão pela simpática cidade de Lahore, onde conheci mais que uma incrível cidade, mas um dos centro da cultura Sufi, uma espécie de misticismo islâmico, e da música qawalli, um gênero musical tipicamente paquistanês. Dali segui para as mais incríveis montanhas que já vi em minha vida, cruzando a Karakoram Highway até perto da fronteira com a China, para então retornar e seguir minha direção rumo ao Irã. Neste ponto de minha viagem o país já havia me encantado, mas é claro, havia dificuldades também. Logo que saí do Estado de Punjab a polícia já começou a fazer parte do meu time.
Não que eu quisesse a polícia comigo, mas por ser obrigado. Por vezes eles me escoltaram com um carro e algumas metralhadoras, já em outras eles apenas se recusaram a me seguir a 20 km/h e apenas jogaram minha bicicleta dentro de uma caminhonete e me levaram até um lugar considerado seguro. O meu último lugar seguro no país foi a cidade Quetta, capital do Estado do Balochistão. Depois foi apenas polícia e transportes até a fronteira com o Irã, que marcava o fim de meus difíceis deias de sul asiático e o início de minhas pedaladas pelo Oriente Médio. Ao final de quase 6 meses nesta parte da Ásia, eu percebi que havia sofrido bastante, mas que havia aprendido diversas lições de vida, na mesma medida que eu havia encontrado dificuldades. E naquele momento, eu olhei para trás, vi que milhões de pessoas nunca saíriam daquela vida. Não havia nada que eu poderia fazer, a não ser admitir que isso era parte integrante da vida. Foi alí também que eu percebi o que esta viagem estava fazendo comigo. Mudanças. Mas era hora de entrar no Irã e eu olhei para frente e segui em frente.
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Arthur Simões Cardoso Neto, 26 anos, é formado em Direito, professor de yoga, ciclista e esportista convicto. Ele executa o Pedal na Estrada viajando por mais de 30 países sobre uma bicicleta, com o patrocínio da Bristol-Myers Squibb e o apoio de Fuji Bikes, Dennova e Base64. www.pedalnaestrada.com.br |