A bicicleta já estava encaixotada, assim como meus alforjes. A viagem seria curta, mas inevitavelmente aérea. Não havia nenhum outro tipo de conexão entre a Austrália e a Indonésia. Minha excitação era grande, a Austrália havia sido um incrível país e me oferecido uma memorável pedalada, o bom é que tudo indicava que a Indonésia também seria assim. O avião chegaria em Bali depois de uma curta escala em Sydney. Chegou a hora e eu me despedi da família que me adotou em Brisbane; entrei no avião; ganhei apenas um copo dágua (era um vôo econômico); escutei passageiros dizerem: ahh eu amo Bali, você vai amar também. E isso foi o suficiente para eu me empolgar. A Ásia finalmente chegava!
O avião aterrissou. Eram 9h da noite e a temperatura era de 32°C, com uma umidade do ar de 85%. Nem havia saído do avião e já estava melado. Não seria fácil. Mas isso não era nada. Depois de uma leve revista pelos policiais balineses eu já começara a ser enganado pelos indonésios, cada um contando a sua versão da verdade para conseguir alguns dólares dos turistas. Estava perdido mais uma vez. Segui então para um quartinho abafado na praia mais turística e suja de Bali e em poucos minutos já escutava a conversa monotemática da ilha: Hello Mister, do you want Balinese woman, marijuana, jig-jig? Anything you want! Eu só não sabia o que era o jig-jig, mas não demorei muito a descobrir.
Esta ilha hindu que um dia já foi um paraíso turístico, envelheceu e depois das bombas terroristas, pior, tornou-se decadente. Hoje, com somente 20% dos turistas que tinha em seus dias dourados, os indonésios são capazes de incríveis peripécias para conseguir alguns trocados do primeiro albino (como eles chamam os turistas) que aparecer na frente. Eu não fui uma exceção e depois de poucos dias já não agüentava mais Bali. Tomei então um dos precários barcos do país e fui para Komodo. Atravessei algumas ilhas pelo caminho: a bela Lombok, a epidêmica Sumbawa e a católica Flores. Finalmente estava frente a frente com os lendários dragões de Komodo e eles eram mais simpáticos que os indonésios, para minha surpresa.
Tive apenas poucas horas com os dragões e depois retornei a Bali, para iniciar minha jornada pelo país, Java era meu destino. A super população da ilha, somada à grande pobreza, toda ordem de desastres naturais e humanos e ao pico da estação das chuvas, fez de Java um inferno para mim. Ainda me lembro bem do dia em que depois de pedalar mais de 100 quilômetros sob chuva e com febre eu cheguei a uma pequena cidade que apenas tinha um sujo bordel como lugar para receber os hóspedes. Solução: mais 20 quilômetros até a próxima cidade e 40°C de febre pela noite.
Poucos dias depois eu chegava em Jakarta, capital do país e minha última esperança diante de tanta miséria e catástrofes (enquanto estava no país apenas 2 aviões caíram e 2 barcos afundaram; milhares de mortos). Cheguei na cidade e logo percebi que estava completamente enganado, Jakarta era apenas a pior cidade da Indonésia hoje também sei que é uma das piores do mundo -, com uma miséria e prostituição generalizada, inclusive de crianças, que se vendiam sob os olhos de estéreis policiais da cidade. Saí de lá chocado e fui buscar refúgio em Cingapura. A pequena e desenvolvida ilha de Cingapura era o oposto da Indonésia. Limpa, desenvolvida, organizada e cara, o que eu precisava para me recuperar de tanto caos e também da ameba que estava me destruindo por dentro.
Quando curado, segui para a Malásia com medo que fosse uma nova Indonésia. Por sorte estava completamente enganado e a Malásia foi um dos melhores países de minha viagem. Estradas perfeitas, uma hospitalidade sem igual, fácil comunicação e a melhor comida do mundo fizeram dos meus dias maláios uma incrível experiência. No sul do país estava a ex-colônia portuguesa Malaka; no centro a metrópole Kuala Lumpur, com suas altas torres e incríveis restaurantes; e para o norte, Pulau (Ilha) Perhentian, simplesmente a ilha mais bonita que eu vi nesta viagem. A Tailândia não estava longe agora e só não cheguei antes lá porque minha roda traseira rachou quando eu estava à 10 quilômetros da fronteira. Retornei até a cidade mais próxima, troquei de roda e segui em frente sabendo que seria difícil um país me agradar tanto quanto a Malásia havia conseguido.
A Tailândia começou mal. Já não me comunicava com as pessoas como antes ninguém falava inglês fora dos centros turísticos a comida ficou apimentada e o tratamento, impessoal (como se eu fosse apenas um bolinho de dinheiro pedalando). No entanto, apenas 400 quilômetros para o norte a situação começou a melhorar, pelo menos a comunicação já era possível. Entrei então no incrível circuito das ilhas e praias siamesas. Praia do James Bond, do filme A Praia e outras igualmente cinematográficas, fizeram meus dias mais belos e tranqüilos por ali. Mas eu não parei por aí. Segui pedalando e conheci outra Tailândia, já mais urbana, desenvolvida e civilizada. Bangkok era o centro desta parte do país. Na capital mundial do pompoarismo, onde tomei novas vacinas, tirei vistos e depois segui em frente, para o norte tailandês, para Chiang Mai e o Triângulo Dourado, uma das regiões com a maior produção de ópio do mundo. Empolgado com estes países resolvi fazer 2 adesões em meu roteiro: Camboja e Laos.
O Camboja, mais que um país miserável é uma experiência. Somente a fronteira já me fazia imaginar que eu havia voltado no tempo, uns 500 anos talvez. Gente empurrando carroças e vivendo como animais, numa miséria inimaginável. Não era uma imagem agradável, entretanto mais desagradável era a estrada até Siem Riep. Um longo caminho de buracos atrás de mais buracos, tão grandes que era possível até entrar com a bicicleta toda dentro deles o que fazia o caminho um pouco mais divertido de certa forma. Duzentos quilômetros depois eu estava em Angkor Wat, uma das ruínas mais incríveis que eu já vi. Dalí até a capital do país, Phnom Penh, a estrada contou com asfalto e colaborou comigo e com a bicicleta. Na capital, as cicatrizes do Khmer Rouge de Pol Pot não são difíceis de serem encontradas e o peso do regime que dizimou mais de 25% da população do país, a apenas 30 anos atrás, ainda pode ser sentido no ar.
Isso seria o suficiente para que a população fosse amarga e desiludida, mas ocorre justamente o contrário. O povo cambojano costuma ser muito amável e simpático com todos. Tão simpático que um dia, após pedalar 150 quilômetros, aceitei o convite de um sujeito para ficar em sua casa. Seria apenas mais uma casa das tantas em que eu já me hospedei nesta viagem, mas este cambojano tinha uma surpresa para mim. Ao cair da noite, quando eu já dormia, ele trancou a porta da casa e me acordou para assistir a um filme pornográfico. Naquele momento, ainda assustado, foi que eu entendi o convite que havia sido feito: era para dormir com ele e não apenas na casa dele.
Já era tarde para ir embora e isso me custou um bom tempo de negociação e tensão, explicando que esse não era meu esporte e que eu gosto mesmo é de bicicletas. No final tudo acabou bem, apenas não consegui dormir, mas saí ileso. Dias depois, eu já me recuperava desse trauma na tranqüilidade do Laos e de seu rio Mekong. Tive apenas poucos dias neste acolhedor país, mas percebi que ele é a jóia do Sudeste Asiático, especialmente por sua gente simples e doce as estradas perfeitas e vazias também contam.
Do Laos eu retornei à Tailândia, aonde me preparei para seguir para meu último país do Sudeste Asiático e concluir a pedalada nesta parte do mundo. Era a hora de Mianmar (antiga Birmânia). Em Mianmar não se entra ou se sai, a não ser de avião. Isso graças à ditadura militar que manda no país a mais de 50 anos. Sem opções e decidido a conhecer o último paradeiro deste canto da Ásia, voei para dentro do país. Cheguei na capital Yangon e apesar de toda espectativa negativa que tinha, encontrei um país maravilhoso. Longe dos estragos do turismo comercial e com um povo sereno, puro e inocente, que eu classifico como as melhores pessoas que eu já conheci até hoje. É uma pena não poder dizer o mesmo do governo. Entre as limitações impostas pela ditadura, que proíbe as pessoas até mesmo de conversarem com estrangeiros, eu consegui pedalar até Mandalay, antiga capital do país e um dos maiores centros budistas do mundo. Depois segui para Bagan, uma planície com mais de 4.000 templos budistas, onde a paz reina absoluta.
Como há exceção para tudo, uma moto bateu em minha bicicleta e quebrou a minha gancheira. Eu não tinha uma peça reserva e Mianmar também não tinha. Isso marcou o fim da viagem. Retornei à Yangon e arrumei tudo para deixar o país. Encaixotei a bicicleta mais uma vez, subi num avião e deixei Mianmar e o Sudeste Asiático para trás. Agora era a hora de uma nova experiência, o Sul Asiático (Índia, Nepal, Bangladesh e Paquistão). Já tinha enfrentado dificuldades neste começo de Ásia, mas havia sem dúvida sigo recompensador. Vi pobreza de verdade, vi morte, vi sofrimento, mas não lembro de ter visto um roubo, um seqüestro ou qualquer tipo de atitude violenta naquelas pessoas. Havia aprendido bastante, eu só não sabia que eu iria precisar daquela paz e serenidade (elevada ao quadrado, talvez) para a Índia, meu seguinte destino. Mas esta já outra história.
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Arthur Simões Cardoso Neto, 26 anos, é formado em Direito, professor de yoga, ciclista e esportista convicto. Ele executa o Pedal na Estrada viajando por mais de 30 países sobre uma bicicleta, com o patrocínio da Bristol-Myers Squibb e o apoio de Fuji Bikes, Dennova e Base64. www.pedalnaestrada.com.br |