Pedalando e educando: 2º Relato

4° Diário - 25 de janeiro de 2002 Mato Grosso do Sul

Cheguei no estado Mato Grosso do Sul e percorri metade de sua extensão leste-oeste. Na ponta do "nariz de Minas", extremo oeste do estado, atravessei o rio Paranaíba que divide Minas Gerais de Mato Grosso do Sul. A travessia foi de balsa pois a ponte atirantada que está sendo construída há oito anos ainda não está pronta.

Logo em Paranaíba, minha primeira cidade no Mato Grosso do Sul, percebi que a hospitalidade continuava tão grande quanto em Minas. Agora o cafezinho de Minas foi substituído pelo Tereré, chá gelado muito tomado nessa região. De Paranaíba desci passando por Inocência até chegar na BR 262, único acesso para Campo Grande. Por sinal, aqui, diferente de Minas, não existem opções de estradas de terra, quase todas são asfaltadas, com exceção das estradas que levam às fazendas.

A região é muito plana e boa para pedalar, pela primeira vez cheguei a fazer mais de cem quilômetros por dia. A dificuldade das subidas desapareceu e foi substituída pelo forte sol e com praticamente nenhuma sombra nas estradas, o cerrado fechado que existia no nordeste do estado foi substituído por pastagens e pouco se vê da mata original.

A região é muito pouco habitada (5,81 habitantes por quilômetro quadrado) e fiz várias vezes pedaladas onde passava horas sem encontrar nenhuma casa, carro ou pessoas. As cidades por que passei têm uma característica muito interessante - praticamente todas possuem uma praça de esportes que é muito utilizada pela população, excelente local de integração e logicamente ótimo instrumento para ambientar a cidade e integrar as pessoas de uma forma saudável.

O estado tem o maior rebanho bovino do país e ultimamente o governo tem investido muito na industrialização. Hoje a indústria praticamente igualou sua importância às criações bovinas. A cultura de rodeio e músicas sertanejas é muito forte, tudo tem grande influência da "vida vaqueira" e até as estradas já foram feitas pensando no transporte do gado, que é feito por caminhões ou tocando a vaquejada pelas laterais do asfalto que sempre possui largura suficiente para passar centenas de animais.

Quando cheguei na BR262 a história mudou muito, sempre evito pedalar em grandes estradas pois no Brasil quase todas são muito perigosas, sem acostamento e com motoristas loucos. O trecho de Água Clara até Campo Grande foi feito em três dias sem muita graça, pedaladas no meio de muitos caminhões e paradas na beira de estrada. Valeu a pena porque encontrei um grupo de ciclistas que vinham na outra direção e me passaram várias dicas do Pantanal e contatos em Campo Grande. São os "Trilheiros do Pantanal", grupo de cicloturismo que, como o próprio nome indica, sabem tudo sobre a região que irei passar. Em Campo Grande fiz uma reportagem na televisão que mudou bastante minha viagem.

A partir deste dia as pedaladas são constantemente paradas no meio da estrada por algum carro que me oferece comida, água, ou apenas quer conversar. Em algumas cidades passo e sou aplaudido, gritam, correm atrás, é a maior festa! Depois de Campo Grande fui para Sidrolândia. Fiquei na Aldeia Indígena Tereré de etnia Tereno. Perguntei para Maioque o que ele achava da perda da identidade de sua aldeia: - Tenho o sonho de construir uma casa de sapé, para manter a cultura.

Construí com tijolos pela dificuldade de conseguir e transportar material adequado para a oca. Desejo construir um centro cultural que dê uma caracterização para a aldeia. Tenho medo de, no futuro, as pessoas nos visitarem e não perceberem que aqui é aldeia indígena. Explica Maioque. Por recomendação de Maioque fui para a reserva indígena perto de Nioaque. A aldeia Brejão também de etnia Tereno com 3.114 há e 105 famílias. No caminho desci a Serra de Maracaju e pude matar a saudade das serras de Minas. Apesar de ser uma serra relativamente baixa ela ganha muito destaque pois é a única em toda a grande planície que a cerca. A visão do alto da serra é magnífica e, ao baixarmos, a vegetação fica muito mais densa. 

Os moradores estão substituindo suas tradicionais ocas por casas com tijolos e telhas de amianto, querem ter televisão, geladeira, máquina de lavar, etc. Segundo o cacique José Luís as mudanças estão sendo para pior e as tradições estão se perdendo. Hoje a escola da aldeia possui um professor de língua e de tradições da etnia tereno e ele espera que as próximas gerações comecem a respeitar mais a sua cultura. Além dessa nova disciplina a escola está tentando implantar o segundo grau para não afastar os alunos da comunidade. Algumas mudanças já não possuem volta, como é o caso da religião. Antigamente não existia uma igreja ou religião propriamente dita, eles se consideravam espíritas e acreditavam em Deuses da natureza, hoje existe uma dezena de diferentes igrejas que se estabeleceram na aldeia e na mente dos seus moradores e até mesmo o São Sebastião, santo que lutava contra os índios, virou padroeiro e é comemorado com festa na aldeia.

Todos ali têm uma vida em comum, ninguém é dono de terra e a utilização é feita de acordo com a necessidade dos moradores, eles se ajudam e respeitam os mais velhos de uma forma exemplar. Qualquer problema é levado ao cacique que tem poder sobre todas as autoridades e as decisões sempre são discutidas em conjunto. Todos respeitam muito a natureza e vivem em perfeita harmonia com seu entorno. Nessa nova realidade indígena é preciso que eles tenham maior consciência da importância de sua cultura e não se espelhem tanto nos brancos pois, em muitos aspectos, os indígenas têm muito mais a ensinar do que a aprender. Agora vou para Bonito, Bodoquena, Miranda e sigo para o Pantanal.


5° Diário - 17 de fevereiro de 2002 Mato Grosso do Sul

Acabo de passar por locais abençoados pela natureza. A região da Serra da Bodoquena, onde se encontra a cidade Bonito, e a região do imponente Pantanal. Além das belezas naturais esse trecho tem algumas cidades historicamente interessantes como Miranda, que já foi a cidade mais importante de toda a região e Corumbá com seu porto na margem do Rio Paraguai que já foi um dos portos mais ativos do país. A partir da serra de Maracaju a vegetação mudou muito, é um cerrado bem mais denso e com mais declives. Na serra da Bodoquena o solo é rico em calcário o que proporcionou a formação de várias grutas e rios com águas transparentes. Toda essa beleza aliada à proximidade do Pantanal fez da cidade de Bonito um grande pólo turístico que vem se desenvolvendo de uma forma organizada e com várias atitudes de preservação do meio ambiente. De Bonito para Miranda desidratei. O sol é muito forte e bebi pouca água. O resultado foi uma febre em Miranda e três dias de cama. Depois disso comprei um galão de cinco litros de água, só pedalo de manhã e final de tarde e estou bebendo muito mais Tereré, afinal essa tradição paraguaia não se enraizou por aqui sem motivo, esse chá gelado é uma forma cultural de beber água o dia inteiro. (foto ruínas da Usina de Açúcar - Miranda) Depois de me recuperar parti para o Pantanal.

Esse trecho tem poucas cidades e, por sorte conheci João Carlos, dono de uma fazenda que fica estrategicamente no meio do caminho entre Miranda e Passo do Lontra. Fiz minha primeira parada aí e segui pela Estrada Parque, foi o trecho onde percebi porque o Pantanal é tão famoso. Realmente é difícil não se impressionar. O Pantanal é a maior planície alagada do Planeta e foi reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade, é uma região de fauna e flora riquíssimas. Aprendi que jacaré é bicho manso e pude até chegar perto para fotografar. (Foto jacaré ) (Foto tuiuiú) Passei pelo Passo do Lontra e fiquei na "Cabanas do Pescador", uma pousada sobre palafitas, onde todas as janelas e portas possuem telas para os milhões de pernilongos não entrarem. Lá fiz uma pescaria e voltamos com nove Pacus. Durante a pesca escutei o impressionante estrondo feito pelos macacos bugio que mais parece um aeroporto. O pescador Gilson Valdonado foi quem mostrou as "manhas" e também ensinou as leis de pesca que ocorrem na região. O turismo descontrolado feito pelos pescadores diminuiu muito a quantidade de peixes dos rios e hoje existem leis que limitam a pesca para que o rio possa voltar ao que era antes.

Na Estrada Parque atravessei o rio Paraguai, subi a morraria do Urucum e cheguei em Corumbá, cidade que faz fronteira com a Bolívia. Coincidência ou não foi exatamente no primeiro dia de Carnaval. No alto da cidade um Cristo Redentor, embaixo escolas de samba, do lado um rio imenso que vai até o Oceano Atlântico. Estou no Rio de Janeiro!? Será que a bússola tava errada? O carnaval de Corumbá é famoso em todo estado, sem nenhuma briga e muita animação. Procurei um lugar para hospedar e encontrei a Casa dos Estudantes da UFMS. O rio Paraguai liga a região de Miranda e Corumbá (Pantanal) ao Oceano Atlântico passando pelo Paraguai, Argentina e Uruguai, sendo navegável por toda extensão. Isso fez com que essas cidades tivessem uma ocupação muito diferente das outras pelas quais passei. (Foto casa Vasquez e filhos) Toda região que passo agora já foi encoberta pelo antigo mar de Xaraés, prova disso são os fósseis de Corumbela sp, um antigo organismo marinho que pode ser encontrado na mina do Urucum.

O estado do Mato Grosso do Sul foi criado na ditadura, quando Mato Grosso foi dividido em dois: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A divisão causa polêmica até hoje e ainda é tema de discussões nas tvs e jornais locais. Existe uma lei para mudar o nome do estado para Estado do Pantanal. Eu gostei da idéia, fica bonito e exalta uma grande beleza que possuem. Agora vou para Bolívia, depois de pedalar 2400 km no Brasil. Farei o trecho Puerto Quijarro até Santa Cruz de la Sierra com o famoso "Trem da Morte" pois não existe estrada e de lá começo a grande subida dos Andes, onde chegarei a locais com mais de quatro mil metros de altitude.


6° Diário - 06 de março de 2002 Bolívia

Entrei na Bolívia. Passei por Quijarro, Santa Cruz de la Sierra, El Torno, Samaipata, Mairana e Mataral. Visitei as ruínas de um importante forte Inca e agora estou subindo a Cordilheira dos Andes em direção à Cochabamba. Estas últimas semanas foram muito boas para o projeto. Concluí a primeira etapa brasileira e recebi a carta do Governo Federal, através do Ministro do Esporte e Turismo Sr. Carlos Melles, elogiando o projeto e pedindo o apoio dos países por onde passarei. Muito obrigado!

De Corumbá fui para Puerto Quijarro, na compania do Marcelo, Ísis e Fabio, amigos da casa dos estudantes. Quijarro é um povoado muito pobre que vive praticamente conectado com Corumbá (20 km de distância), é uma zona franca de livre comércio e está ligado com as outras partes da Bolívia somente através do famoso trem da morte (www.fcosa.com). Com o gasoduto Brasil-Bolívia, que está sendo construído, existem planos de asfaltar o trecho Corumbá - Santa Cruz que hoje praticamente não existe.

Percorri o trecho de pântano boliviano no famoso trem e passei por vários povoados muito pobres que vivem praticamente da venda de alimentos para os passageiros. Várias vezes presenciei a cena triste de pessoas vendendo animais selvagens para os passageiros - ali chegam a vender um papagaio por um dólar. Conheci muitos estudantes de medicina brasileiros que fazem seus cursos em Santa Cruz e Cochabamba, uma alternativa para evitar as caríssimas faculdades particulares de medicina brasileiras. Em algumas faculdades particulares da Bolívia mais de 80% dos estudantes são brasileiros. Na região existiram várias tribos indígenas e os primeiros habitantes foram os guaranis, aimarás e quíchuas (Séc. XV a.C. ). O Império Inca (Séc XIV d.C. ) dominou praticamente toda a Cordilheira até chegarem os espanhóis (Séc. XVI d.C.) destruindo toda civilização existente.

Em 1825 o venezuelano Simón Bolívar conquista a independência da Bolívia que tem o nome em sua homenagem. Hoje a Bolívia é um dos países mais pobres da América do Sul com um alto índice de analfabetismo (14,4% - 2000). Ernesto Ché Guevara (1928-1967) é a figura que teve mais influência na história boliviana do Séc. XX, apesar de ser argentino (Rosário). Ché simboliza um idealista coerente com seus ideais que mobilizaram a juventude boliviana. Conheceu Fidel Castro no México e o acompanhou na triunfante luta revolucionária cubana de 1959. Guerrilhou na Bolívia na década de 60 seguindo os ideias de libertação do imperialismo norte americano a acabou assassinado em 1967. Em Santa Cruz de la Sierra, uma das maiores cidades da Bolívia (um milhão de habitantes) fiquei na casa dos estudantes brasileiros que conheci no trem. Santa Cruz é famosa por causa das "magníficas", garotas que fazem concurso de beleza e envolvem todo país. As "magníficas" são tão importantes para os bolivianos que o país, com milhões de problemas de infra estrutura básica e conflitos políticos, chega a passar todo um dia televisionando desfiles e concursos de misses.

Praticamente todo tipo de publicidade do país se resume em tirar uma foto com o produto e uma "magnífica" do lado. De Santa Cruz fui para El Torno, numa estrada praticamente plana a uma altura de 350 metros acima do nível do mar. A estrada parece mais uma avenida que passa dentro de vários pequenos povoados. El Torno é o povoado que possui um mercado no meio da estrada. Ali jantei num interessante bar que serve a tradicional galinha frita com batatas. A diversão do bar é assistir às fitas de filmes bolivianos da coleção do proprietário japonês. Os filmes são passados numa televisão que fica na calçada de terra onde dezenas de pessoas ficam em pé assistindo. O limite da Cordileira com o Chaco é muito contrastante, de repente começam as montanhas e a paisagem plana não volta mais. Toda a subida é acompanhada por paisagens formadas pelas grandes elevações e rios que correm por vales muito profundos. A viagem teve uma emoção extra com seus grandes precipícios. Quase todas estradas e ruas da Bolívia são de terra e as poucas asfaltadas possuem muitos problemas. Grande parte dos automóveis daqui são 4x4 e até mesmo a bicicleta teve de substituir o pneu de asfalto pelo de estrada de terra. Em vários trechos a estrada está parcialmente interrompida por grandes pedras que caíram e ainda não foram removidas. Um "perrengue" me batizou logo no primeiro dia nos Andes. Após subir mais de mil metros encontrei um grande vale a poucos quilômetros das ruínas Incas de Samaipata.

Estava cansado e meu joelho já me pedia para parar. Resolvi entrar no vale seguindo as placas do Resort Ashira Camping que me parecia um excelente lugar para descansar. Lá descobri que o imenso Resort estava completamente vazio, fiquei esperando alguém aparecer por mais de uma hora até perceber que eu estava completamente sozinho. Escureceu e eu já não tinha outra opção senão invadir o Resort e estender a barraca em algum canto. Entrei em um banheiro, tomei banho, fiz um macarrão para "emergências" que carregava desde o início da viagem e segui esperando. Cheguei a ficar gritando no meio do vale para ver se alguém aparecia e nada. Armei a barraca e coloquei algumas reportagens que carrego comigo na portaria com um texto tentando explicar a invasão. Logicamente fiquei todo tempo acordado e somente no meio da noite o dono chegou e pude dormir tranquilo. No outro dia o Sr. Gonzalo, dono do resort, me preparou um café da manhã reforçado e fez questão de não me cobrar nada. Valeu Gonzalo!

No início da subida da cordilheira, a 1600 metros acima do nível do mar, está o povoado de Samaipata que em quíchua significa descanso nas alturas. Samaipata possui uma das ruínas Incas mais orientais. Ela está estrategicamente situada perto da nascente do Rio Piraí (um dol milhares de afluentes do Rio Amazonas) a oeste do Pantano, a sul da Floresta Amazônica e a leste da Cordilheira Andina. Vários pesquisadores pensaram que o monumento foi feito exclusivamente pelos Incas mas no local também se encontram resquícios da cultura pré-incaica de Tiwanakuy e tribos silvícolas conhecias como Chiriguanos e Chanés. A parte mais impressionante das ruínas é o Centro Cerimonial del Fuerte, um arenito esculpido com 200m de comprimento e 60m de largura. Recentemente foi declarada pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. A maior rocha esculpida do mundo tem diferentes desenhos, dentre eles um puma, um jaguar e uma serpente que representam força, poder e vida respectivamente.

Os Incas faziam ali o culto ao sol e à deusa da fecundidade para bons cultivos. A agricultura era a base da vida quíchua (Inca). O local também era usado como centro comercial dos Incas, Guaranis e Chanés. As tribos fizeram difrentes intervenções na estratégica região do forte, os Guaranis, antropófagos, usavam o círculo central da área cerimonial para sacrifícios humanos enquanto os Incas usavam para comemorações e reuniões de líderes. Estes viviam em uma espécie de sistema monárquico socialista onde todos trabalhavam e repartiam seus ganhos respeitando sempre seus três preceitos básicos: ama llulla (não mentir), ama sua (não roubar), ama q'uella (não ser preguiçoso). Fui para as ruínas acompanhado pelo descendente Inca e estudante de turismo Ramirez que fez uma gravação em língua quíchua para o projeto. Em Samaipata encontrei várias coincidências. A praça central foi recentemente construída e projetada por três arquitetos que, assim como eu, se formaram na Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso descobri que o irmão do prefeito é atleticano e vive em Belo Horizonte.

PATROCÍNIO: Cultura Inglesa APOIOS: Atex Lajes Nervuradas, BHZ Arquitetura, SOL Serviços On Line, Aliança Francesa, Prudential Bradesco, Rotary Club e Telemig Celular

*Os Textos completos você encontra no site: www.pedalandoeeducando.com.br

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Pedalando e educando: O Projeto