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Expedição Serra do Espinhaço, a Cordilheira Brasileira, de Bicicleta

| Texto e Fotos: Fabiano Zig - Especialmente para o Clube de Cicloturismo do Brasil | Reprodução de texto e fotos somente com autorização |

Há muito tempo uma vontade imensa de realizar algo grandioso e ousado, que me desse um sentido maior à vida, batia forte em meu ser. Mais que apenas conhecer lugares, eu queria viver, sentir e aprender com essa experiência. Assim formatei a Expedição Serra do Espinhaço, a Cordilheira Brasileira, de Bicicleta.

No final de 2013 juntei minhas três paixões – a bicicleta, as montanhas e a fotografia – e realizei o sonho. Foram dois meses de cicloviagem, percorrendo cerca de 1.900 km entre as cidades de Ouro Branco, em Minas Gerais, e Xique-Xique, no sertão baiano, às margens do rio São Francisco, sempre com a cordilheira em minha companhia. 

Roteiro traçado, bicicleta revisada, orçamento baixíssimo e condicionamento físico daquele jeito mais ou menos... e no dia 13 de dezembro de 2013, partimos eu e Jack, a minha bicicleta. Não sou atleta, mas minha vontade e determinação eram tão reais, que me permitiriam superar qualquer dificuldade.


1º dia da Expedição. Saída de Ouro Branco – MG. Reparem como eu e a Jack estamos “limpinhos” e “gordinhos”

Na primeira etapa da expedição, percorri o Caminho dos Diamantes da Estrada Real. Para quem é novato em viagens de longa distância de bicicleta, os roteiros da Estrada Real são excelentes: há estrutura disponível, com informações e mapas bem detalhados, o que traz um pouco mais de confiança. Costumo dizer que nessa etapa eu quase não pedalei. Isso mesmo, porque em Minas Gerais são tantas serras, tantas subidas e descidas, que, para encarar uma pirambeira, eu empurrava a Jack ladeira acima com 40 kg de equipamentos; para descer, ia na banguela. Ou seja, não pedalava...  Mas isso aconteceu apenas na primeira semana. Com o tempo, o corpo vai gradativamente ganhando condicionamento. E perdendo alguns quilinhos também.


Com a Jack carregadíssima subir a Serra de Itatiaia entre Ouro Branco e Ouro Preto foi um belo teste

Já nesses primeiros dias da expedição, percebi o quanto o povo mineiro é generoso. Em alguns momentos eu batia na casa de alguém para pedir uma informação sobre o trajeto ou as peculiaridades da região e, além das respostas, ainda ganhava um almoço, um café e até hospedagem. De uma forma muito carinhosa, com o único interesse de me ajudar e assim fazer parte da expedição também. Quando eu respondia às perguntas sobre de onde eu vinha e para onde estava indo, a reação era sempre a mesma: “tá animado”. Ao perguntar sobre algum lugar, estrada ou caminho, eu também ouvia sempre a mesma resposta – “é logo ali”, acompanhada de um movimento do queixo na direção do lugar. Logo entendi que esse “é logo ali” era algo que eu poderia encontrar dali a 5, 10, 30 ou 50 minutos, à esquerda ou à direita... Mas no final sempre dava certo!

Em uma semana de viagem, eu já havia passado por Ouro Branco, Ouro Preto, Mariana, Camargos, Bento Rodrigues, Catas Altas, Santa Bárbara, Bom Jesus do Amparo e Ipoema - cidade que tem o Tropeirismo como símbolo. Em Ipoema fiquei hospedado na Pousada Tropeiro Real, do meu amigo fotógrafo Roneijober, e o que era para ser apenas um pernoite virou uma hospedagem de quatro dias, devido às fortes chuvas que assolavam a região, transbordando os rios, derrubando pontes e barreiras e impedindo, assim, o progresso da expedição. No quarto dia de espera, não aguentei mais e decidi que, com ou sem chuva, a viagem iria continuar. Enfrentando lama, muita lama e mais um pouco de lama, segui rumo a Morro do Pilar, onde passaria a noite de Natal.


Muita lama mesmo... E uma barreira que caiu na estrada impedindo a nossa travessia...

Cheguei em Morro do Pilar no dia 24, véspera de Natal. Depois de aproximadamente 10 horas pedalando embaixo de uma chuva torrencial, finalmente encontrei uma pensão que aceitou me receber naquelas condições. Depois de um banho quente, fui para o bar de seu Malaca, junto com o proprietário da pousada, o Tião, e dois outros hóspedes – trabalhadores que estavam na região para consertar os estragos causados pelas chuvas nas estradas. Nossa ceia de Natal intercalou goles de cachaça, torresmo e muita prosa boa...

Dia de Natal é dia de pedal. Entre subidas e descidas na Serra do Espinhaço na região de Minas Gerais foi impossível não me incomodar com a grande exploração de minério de ferro. Diversas mineradoras nacionais e internacionais atuam na região. Retiram do solo mineiro toda a riqueza e levam para fora, deixando apenas a destruição ambiental, já que nos municípios onde há mineração as condições de vida da população não são boas: falta escola, falta hospital e tudo mais... Fica a pergunta: qual a contrapartida oferecida pelas mineradoras para esses municípios?

A Expedição Serra do Espinhaço, a Cordilheira Brasileira, de Bicicleta chegou então na comunidade do Tabuleiro, distrito de Conceição de Mato Dentro, um dos lugares mais memoráveis da viagem. A vista da Cachoeira do Tabuleiro, no Parque Estadual de mesmo nome, é de tirar o fôlego!


Cachoeira do Tabuleiro, mais um espetáculo do gigante Serra do Espinhaço

A primeira etapa da expedição já tinha sido vencida. O Caminho dos Diamantes da Estrada Real foi um ótimo treino: meu condicionamento físico já estava bem melhor. Dali para frente, eu sairia da rota turística para me lançar rumo ao sertão, com a sensação de que, agora sim, a expedição começaria de verdade.

Um pouco mais ao norte de Diamantina, no Parque Estadual do Rio Preto, um exemplo de unidade de conservação aliada ao ecoturismo, conheci Tonhão, o gerente do parque, um grande ser humano.

Parque Estadual do Rio Preto, um exemplo em unidade de conservação (04 fotos)

Entrando na segunda etapa da viagem, rumo ao norte de Minas Gerais, queria chegar à cidade histórica de Grão Mogol. Para isso, enfrentei a BR367, com alto tráfego de caminhões, vias esburacadas e, às vezes, sem acostamento. Por mais de 80 km, tudo o que se vê ao redor é a monocultura de eucalipto. É um mar sem fim de eucaliptos e algumas empresas produzindo carvão vegetal para a indústria. Ainda que, hoje em dia, os trabalhadores sejam registrados, usem equipamentos de segurança e tenham uma condição aparentemente mais digna, o trabalho continua bem pesado. Suas faces, porém, mostram a simplicidade e a alegria do povo mineiro.


Um sorriso, um olhar... Povo que não foge à luta

Desde a partida, em Ouro Branco, eu já havia me hospedado em diversos lugares, alguns nada convencionais: garagem de oficina mecânica, vestiário da Guarda Municipal de Mariana, postos de gasolina, pousadas, república de estudantes, no meio do mato e em campings. Na comunidade de Pedregulho, porém, tive uma experiência desagradável. Havia pedalado o dia inteiro, sob o sol forte, enfrentando subidas e muita areia e cascalho na estrada, o que dificultava o pedal. No fim do dia, percebi que o tempo tinha mudado e um temporal se aproximava. Cheguei lá em meio a uma tempestade com raios, e o que eu mais queria era um lugar para tomar um banho e descansar. Recebi a informação que havia um rapaz que alugava quartos nesse lugarejo e fui à procura dele. Encontrei o rapaz, que me cobrou vinte reais adiantados por um quarto semiacabado, garantindo que tinha um chuveiro com água quente. Assim que ele me entregou a chave do quarto e “sumiu”, comecei a arrumar minhas coisas. Ao tentar tomar meu merecidíssimo banho, para a minha desagradável surpresa, não havia água! E cadê o rapaz? Como eu sempre ando com 1,5 litro de água extra, me salvei com um banho de toalha úmida. Foi a única vez que fiquei mal humorado na expedição. No dia seguinte, o tal rapaz aparece, me dá bom dia e pergunta se eu dormi bem. Respondi que não, e pedi meu dinheiro de volta. Ele me olhou desconsolado, dizendo que havia esquecido de ligar a bomba de água e que já tinha gasto o dinheiro. Eu apenas desejei tudo de bom para ele e fui embora...


A vista é linda, mas fiquei sem tomar banho nessa “hospedaria”

Seguindo sempre rumo ao norte de Minas Gerais, passei por Itacambira, Botumirim – onde almocei com o prefeito e dei entrevista para a tevê. Segui para Cristália e enfim cheguei na cidade histórica de Grão Mogol. Fui muito bem recebido, havia pessoas me esperando, pois sabiam que a expedição iria passar por lá. Tive muito apoio e carinho nessa cidade. Grão Mogol é um vilarejo construído sobre o cascalho do diamante. Muitas casas são de pedra e as histórias do Barão de Grão Mogol ainda ecoam em suas ruas e vielas. Para minha sorte – ou azar – foi em Grão Mogol que senti muito o joelho. Onde fiquei hospedado, havia um grupo de médicos que atuavam na cidade e um deles me aconselhou: “Se você quiser terminar sua expedição, é melhor parar por cinco dias, descansar, tomar anti-inflamatório e aplicar gelo...” Como eu estava bem instalado e recebendo apoio da Prefeitura, decidi escutar o doutor e realizar o tratamento. Depois de cinco dias de molho, estava apto a pedalar novamente e muito agradecido a toda a comunidade de Grão Mogol, especialmente ao Paulinho, o ciclista do Cerrado, que organizou tudo para mim nessa cidade.


Paulinho, o ciclista do Cerrado, um grande amigo que fiz na Expedição

Chegando ao final da segunda etapa, ainda passei por mais dois parques estaduais, o de Grão Mogol e o Serra Nova. Essa região está localizada no polígono das secas, mas, para minha sorte e de todos os moradores da região, a chuva havia caído algumas semanas antes. Tudo estava bem verdinho, e as cachoeiras, cheias.


Cachoeira do Cerrado, Parque Estadual Serra Nova

Comecei a me despedir de Minas Gerais e de seu povo tão hospitaleiro e generoso. E a generosidade mineira mostrou sua força até o final. As últimas três cidades antes de cruzar a divisa com a Bahia são Mato Verde, Monte Azul e Espinosa. Num posto de gasolina de beira de estrada parei para tomar uma água. Um rapaz se aproximou, fez as perguntas costumeiras e incluiu mais uma: “Sua bicicleta precisa de um tratamento, não?”. A Jack é uma guerreira, quase não me deu problemas, mas depois de 1.000 km de estradas de todos os tipos, carregando 40 kg só de equipamentos, quatro raios da roda traseira já haviam quebrado e a roda estava empenadíssima, tanto que tinha soltado o freio para poder pedalar. Concordei com o rapaz: “É, minha bicicleta precisa de uma manutenção...” Para minha surpresa, Bruno é ciclista, tem uma oficina de bicicleta na casa dele e se dispôs a arrumar a Jack de graça!


Um dos anjos que me ajudaram na Expedição, Bruno de Monte Azul

Em Espinosa, a última cidade de Minas Gerais, recebi o apoio e o carinho da família Castro, onde ganhei almoço, pouso e ainda assisti a uma partida de futebol da liga regional, coisa séria! Depois de me despedir dessa família maravilhosa, segui rumo à divisa com a Bahia.


A família Castro me  adotou com todo carinho e amor em Espinosa, última cidade ao norte de Minas pela BR 122

Chegar na Bahia me emociona: cruzar uma divisa de Estados é sempre um ponto alto. É simbólico. Também tenho muito afeto por esse Estado, pois passei alguns anos de minha vida nele, exatamente no Vale do Capão, na Chapada Diamantina, cujas serras e montanhas também fazem parte da cordilheira da Serra do Espinhaço. E desse ponto em diante a caatinga seria a vegetação predominante e o sol do sertão seria de rachar.


Quem nasce aqui nessa região é baianeiro...

Conforme a expedição percorreu todo o Estado de Minas Gerais até cruzar a divisa com a Bahia, fui percebendo, além da mudança da vegetação – Mata Atlântica, depois Cerrado e então Caatinga – também a mudança no sotaque e no modo de falar das pessoas. No norte de Minas Gerais, como se fosse uma transição, mistura-se um “uai” tipicamente mineiro com um “oxi” bem característico do povo baiano. Uma riqueza cultural que nos enche a alma e nos faz refletir que, de uma forma ou de outra, estamos todos ligados.

Em direção a Urandi, pela BR 122, pedalando no acostamento da rodovia com um tráfego intenso de caminhões nas duas direções, surge um novo e inédito desafio: o vento contra. Eu já tinha enfrentado barro, cascalho, subidas, chuva e areia, mas o vento contra dá uma sensação de estar praticamente pedalando para trás: você pedala, pedala e pedala e parece que não sai do lugar, apesar do esforço grande.

Cheguei a Urandi sob um sol escaldante do sertão. Decidi almoçar num restaurante “por quilo” e, como a fome era muita, acabei comendo mais do que devia. Consegui vencer a preguiça pós-almoço e peguei a estrada: eu ainda pretendia pedalar por mais alguns quilômetros até Licínio de Almeida. Antes de sair, um senhor lá no restaurante alertou que eu iria enfrentar uma serra muito íngreme, duvidando da minha capacidade de pedalar morro acima. O que ele não sabia é que, depois que eu havia experimentado as montanhas de Minas Gerais, tudo o que veio pela frente parecia brincadeira de criança – e essa subida, de fato, foi. Aprendi que em regiões de grandes planícies, como aquela do semiárido baiano, qualquer morrinho ganhava fama de Himalaia.

Foi exatamente nesse trecho entre Urandi e Licínio de Almeida que um dos “milagres” mais incríveis me aconteceram. Sim, quando nos jogamos numa aventura como essa, na qual nossa única certeza é pedalar mais e mais, alguns milagres acontecem, como um mecânico de bicicleta que aparece do nada quando você mais precisa consertar a magrela, ou uma borracharia que surge na estrada no exato momento em que um dos pneus está quase vazio e a sua bomba de ar quebra. Mas esse milagre tem cara de milagre mesmo. Entre as duas cidades há um lugarejo com o lindo nome de Salto da Onça, onde parei num bar para um refrigerante. Entrei, cumprimentei a todos, tomei o refri, paguei e segui o meu rumo. Já havia pedalado uns 4 km quando percebi que a bolsa de guidão – onde eu guardava a carteira com todos os documentos e parte do dinheiro – estava aberta. E o pior, que a minha carteira havia caído. Fiquei em choque por alguns segundos. Quando se está num lugar inóspito e uma adversidade acontece, não adianta sentar e chorar: isso não vai resolver nada. Decidi então retornar até o bar onde havia tomado o refrigerante, olhando atentamente a estrada de terra e areia para tentar encontrar a carteira. Pedalei por cerca de 2 km e nada da carteira. Continuei minha busca determinado e vi um motoqueiro vindo em minha direção muito rápido. Naquele momento tomei uma atitude espontânea de parar o motoqueiro, único ser humano que havia passado por ali na última hora. Sem pestanejar, acenei com os braços pedindo para ele parar. Obtive sucesso. Perguntei para o rapaz se ele havia achado uma carteira e, para o meu espanto, ele sacou do bolso minha carteira intacta! Milagre! Ele disse que vinha vindo do trabalho para a casa por aquela estrada quando passou por cima de um volume, percebeu que não era uma pedra, resolveu parar e encontrou minha carteira. Eu até hoje não sei o que me fez parar aquele motoqueiro. A carteira estava novamente comigo com tudo o que havia dentro. Agradeci ao rapaz, dei a ele dinheiro para uma cervejinha como sinal de gratidão, rezei e agradeci aos meus santos.


Nessa estrada, eu perdi a minha carteira, um motoqueiro passou, eu o parei, perguntei se ele havia encontrado alguma carteira, ele disse que sim e a me devolveu com tudo dentro!!! PARE, OLHE e ESCUTE mais...

Em Licínio de Almeida encontrei um posto de gasolina já na saída da cidade, onde o frentista me permitiu armar a barraca para passar a noite.  Assim que terminei de levantar meu acampamento apareceu um rapaz, o Zé da Ecotur, dizendo que eu poderia ficar na agência de turismo dele. “Sim, obrigado, mas como você soube da minha presença aqui?”, questionei. Ele me contou que um amigo do amigo do amigo lá de Espinosa havia dito que um ciclista iria passar por Licínio. E não é que o Zé estava meio que me esperando, sem eu saber? Aceitei o convite para me abrigar na agência de turismo dele e, mais uma vez, fiz um grande amigo. As amizades que fazemos na estrada duram para sempre, independentemente do tempo e da distância. Isso porque as situações nas quais conhecemos as pessoas ganham um significado gigantesco. E o apoio é oferecido sem segundas intenções. Parece que todos estão de peito aberto para simplesmente viver a vida e ajudar o outro.

Ao chegar em Caculé, entrei definitivamente na caatinga baiana. É nesse trecho da viagem que a Serra do Espinhaço dá uma rareada. Sim, existe uma “falha” entre as montanhas da cordilheira de mais ou menos 100 km. Ou seja, o que vinha pela frente era apenas asfalto: sem subida, sem montanha, apenas a paisagem monótona da caatinga e muito calor. Decidi então pegar um ônibus de Caculé até Dom Basílio, para me reencontrar com o Espinhaço já no portal sul da Chapada Diamantina. Mas antes quero contar de um dos encontros mais interessantes da expedição. Cheguei em Caculé por volta do meio-dia. Estava ainda resolvendo o que iria fazer, se acamparia ou pegaria um quarto de pensão para passar a noite, ou ainda se pegaria ou não um ônibus até a próxima cidade. Pedalando tranquilamente vi três senhoras e uma cabrita em frente a uma casa. A cabritinha estava ao lado das três como se fosse um cachorro. Dei meia volta e perguntei para as senhoras: “A cabrita é de estimação?" A resposta: “Sim, e o nome dela é Karina”. Dona Odete, a matriarca, viveu a vida toda na roça cuidando de cabras. Com a idade avançada, não tinha mais condições de trabalhar na lida, então as filhas a trouxeram para morar com elas. Como ela sentia muita falta da criação, um dos netos lhe dera de presente a Karina, tão bem cuidada quanto um cachorrinho de estimação, com direito a ração balanceada, banhos, fitas e outros mimos. Além de ouvir essa história incrível, também fui convidado a almoçar. Imagine se eu não fiquei feliz. Depois de alguns dias de estrada, provar uma comidinha caseira foi sensacional!


Karina e Dona Odete amigas inseparáveis... Quero também agradecer as Donas Lia e Marlene (filhas de Dona Odete) pelo o delicioso almoço!!!

A cada quilômetro pedalado, a sensação de estar cada vez mais perto de casa aumenta. Considero a Chapada Diamantina a minha casa e estava chegando na cidade de Livramento de Nossa Senhora, conhecida como o Portal Sul da Chapada. Lá também enfrentaria outro desafio, pedalar a Serra das Almas, com seus 4 km de subida até chegar na primeira cidade da Chapada – e, para mim, a mais bonita – Rio de Contas.


4 km de subida e um cumprimento aos anjos... E assim a Expedição entra na Chapada Diamantina

Rio de Contas a cidade mais bonita da Chapada Diamantina

Faltava pouco pra chegar “em casa”. Na sequência, passei por Abaíra, cidade famosa por produzir uma das melhores cachaças da região. Segui em direção à Serra do Bastião, o nome da Serra do Espinhaço na região da Chapada Diamantina. É uma subida dura, difícil, com a estrada cheia de buracos e muita areia. Cheguei a um vilarejo chamado Brejo de Cima. Era um domingo muito quente, não havia ninguém na rua, apenas um bar aberto com alguns homens bebendo uma cervejinha e jogando conversa fora. Quando cheguei, todos pararam para me ver. Eu era quase um ET. “De onde esse cara caiu?” foi uma das perguntas que ouvi. Respondi as mesmas perguntas de sempre e, quando perguntei o que tinha para comer, o dono me disse que só tinha caldo de mocotó. “Desce um, com uma cerveja bem gelada, por favor”. Depois de enfrentar aquela subida, naquele calor, nada melhor do que um caldo de mocotó e uma cerveja gelada para refazer a pessoa. Porém, aquele caldo foi um pouco além da conta: eu não conseguia dar mais uma pedalada sequer. Sabe quando você come e dá aquela moleza? Pois é... Só mesmo a vontade de chegar mais perto do Vale do Capão para me fazer pedalar por mais alguns quilômetros.


Abaíra capital da cachaça

Cores do sertão

Vilarejo de Brejo de cima

Cacto florido

Já estava escurecendo quando encontrei uma linda casa na beira da estrada. Com um detalhe: estava abandonada. Dei uma olhada geral e decidi passar a noite ali. Era um lugar meio misterioso, dava para perceber que tinha sido cenário de muita vida. O que teria feito aquela família abandonar a propriedade? Talvez a seca ou alguma tragédia familiar. O fato era que seria a minha casa por uma noite. Pensei comigo que sempre tive vontade de ver um disco voador ou alguma paranormalidade. Aquele lugar era perfeito para isso! Estava sozinho, no meio do nada, numa casa abandonada. Chegou a noite, fiz meu jantar, descansei e fiquei aguardando algum acontecimento de outro mundo. Esperei 10 minutos. Como nada aconteceu, entrei na barraca e fui dormir, exausto de ter pedalado serra acima sob o sol do sertão.


Minha casa abandonada onde fiquei a espera do disco voador

Acordei na manhã seguinte sem nenhum contato imediato de terceiro grau. Fiz o café da manhã, arrumei minhas coisas, desmontei a barraca e, na hora de iniciar o meu pedal, um piriri bateu forte. Não sabe o que é piriri? É a famosa dor de barriga e... Vocês já entenderam o que aconteceu, né? Por conta disso, gastei toda a minha reserva de água para deixar tudo bem confortável, se é que vocês me entendem. Resultado: nesse dia, iniciei o pedal sem água. E só fui encontrar água potável depois de mais de trinta quilômetros sob o sol forte numa estrada de areia, que dificultava muito a evolução. Entre passar fome e sede, eu fico com a primeira. Passar fome não é bom, claro, mas a sensação de estar com fome é de fraqueza, desânimo. Você fica amuado e pronto. Mas passar sede é desesperador. A sede faz você ficar louco, mexe com a mente, chega-se ao ponto de beber qualquer coisa liquida. Já provaram água de bromélia? Foi então que, no auge do meu desespero por água, encontrei um grupo de plantadores de batatas trabalhando em sua lavoura. Eles me deram o bem mais precioso do universo: água fresca e pura para beber. Nunca vou me esquecer desse gole d’água, o melhor de toda a minha vida. Não teria nada no mundo que substituísse aquela água. Agradeci, enchi minhas garrafinhas e segui rumo ao Guiné, vilarejo ao lado do Vale do Capão, já nas proximidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Ou seja, no “quintal de casa”.


Serra do Esbarrancado na Vila do Guiné. As montanhas pertencem ao Parque Nacional da Chapada Diamantina

A emoção tomou conta de mim ao chegar na estrada que segue direto para o Vale do Capão. Como eu disse antes, morei no Vale por seis anos e tenho muito amor pelas pessoas e lugares dessa região. Sem dúvida chegar lá de bicicleta foi uma das emoções mais fortes de toda a viagem.


Perto de casa o coração bate forte e a emoção toma conta de mim

Chegar no Vale do Capão foi uma grande festa: rever os amigos, minha casinha e toda aquela energia única do Vale. Foi tão bom, que quase finalizei a expedição por ali mesmo. Não conseguia continuar a viagem, estava me sentindo em casa. Fiquei quase uma semana até me convencer de que a viagem ainda não tinha acabado, afinal a cordilheira brasileira finda em Xique-Xique, às margens do Rio São Francisco, e eu estava a cerca de 300 km de distância desse ponto final. Já havia pedalado cerca de 1.600 km, seria muita covardia não completar o restante. Parti novamente. Meu primeiro destino era Seabra, depois passei pela Serra das Mangabeiras, então segui direto pela BR 242 até Brotas de Macaúbas. Na reta final, passei por Ipupiara, Gentio do Ouro e Gameleira do Assuruá. Nesse trecho pedalei muito, quase não parava para tirar fotos, estava com fome de pedal. Era uma sensação engraçada, queria terminar a Expedição Serra do Espinhaço, mas também sentia uma vontade de que aquilo nunca acabasse, pois eu já sentia que aquela viagem de bicicleta havia me transformado num ser humano melhor e que depois dela minha vida teria mudado. O dia seguinte seria o último.


Serra da Mangabeira na BR 242: é linda e a descida enche o corpo de adrenalina... Uhuuu!

Acordei com um sorriso de “ponta a ponta”. Lembrei de todos os momentos vividos nos 62 dias de expedição. Desde o começo – 10 quilos mais gordo e todo limpinho –, passando pelas chuvas e serras de Minas Gerais, as pessoas que conheci e me deram abrigo, apoio moral e até dinheiro, dos cachorros que correram atrás da bike, do calor, do frio, da noite, do sol, até chegar ali. Enfim, um filme de segundos passou pela minha mente. Naquele momento, faltavam apenas uns 50 km para terminar de percorrer a Serra do Espinhaço em toda a sua extensão! E até no último dia de expedição situações emocionantes aconteceram. Em Gameleira fui tomar um café da manhã numa pousada onde não havia me hospedado. Estava fechada, mas a dona, Denise, fez questão de preparar o café da manhã para mim e ainda não quis me cobrar um centavo. Pelo contrário, até me deu um presente, um livro fotográfico sobre a cidade de Gameleira do Assuruá. Esse povo do Espinhaço é incrível mesmo!


Em Gameleira do Assuruá eu peço um café da manhã e ganho além do pedido novos amigos e até um livro de presente!! Muito obrigado pelo carinho Denise e Marcio da Pousada das Acácias (detalhe, eu não me hospedei lá)

Depois de tantas emoções segui rumo a Xique-Xique, às margens do Velho Chico, pedalando devagar, lembrando de tudo o que havia passado, das pessoas que haviam me ajudado desde antes do começo da viagem, como o meu grande amigo e fotógrafo Marcelo Min, que sempre me apoiou em tudo em minha vida, e também Bernardo Pulher, do site www.serradoespinhaco.com.br, que se tornou parceiro da expedição e também um grande amigo. Penso e agradeço também à minha família. Minha mãe, pelo amor e pelas orações. Sem dúvida ela foi a pessoa que menos dormiu naqueles dois meses. Meu pai, que sempre me deu força em minhas loucuras, e meu irmão, meu fã número 1. 

Aos poucos, a Serra do Espinhaço vai sumindo. Desci seu último declive, que nesse lugar recebe o nome de Serra de Santo Inácio. O gigante Espinhaço vai se “esfarelando” até findar numa lagoa linda. Despedi-me com respeito e gratidão por tudo o que a Cordilheira havia me proporcionado. Recebi muita ajuda de pessoas que nunca haviam me visto antes, mas que se sensibilizaram com a minha expedição e quiseram de alguma forma fazer parte da viagem. Aprendi que nós, seres humanos, temos uma essência divina e boa, precisamos apenas nos educar e nos instruir, para definitivamente vivermos em harmonia com todos os seres que habitam nosso lindo planeta Terra.


Números da Expedição:

A Expedição Serra do Espinhaço, a Cordilheira Brasileira, de Bicicleta foi realizada com recursos próprios (R$50/dia) e teve como meio de transporte uma bicicleta Caloi Elite 2.7. A expedição começou dia 14/12/2013, na cidade de Ouro Branco, MG, e terminou no dia 17/02/2014, na cidade de Xique-Xique, BA. Foram pedalados cerca de 1.975 km, em 63 dias (43 de pedal e 20 descansando), R$ 3.150,00 gastos (comida, hospedagem, manutenção, internet e cerveja), 02 quebras de corrente, 06 raios quebrados, zero pneu furado!!! Foram 60 cidades, vilas e lugarejos visitados (36 em MG e 24 na BA), 10 quilos emagrecidos, 9.825 fotos (sem edição), 32 horas de filmagem (sem edição).

Cidades, povoados e vilarejos visitados

Minas Gerais:
Ouro Branco, Ouro Preto, Mariana, Camargos, Bento Rodrigues, Catas Altas, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Cocais, Bom Jesus do Amparo, Ipoema, Nossa Senhora do Carmo, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar, Conceição do Mato Dentro, Tabuleiro, Alvorada de Minas, Serro, Milho Verde, São Gonçalo do Rio das Pedras, Diamantina, São Gonçalo do Rio Preto, Caçaratiba, Pedregulho, Itacambira, Toarzinho, Botumirim, Cristália, Grão Mogol, Riacho do Machado, Mucambinho, Serranópolis de Minas, Porteirinha, Mato Verde, Monte Azul e Espinosa.

Bahia:
Urandi, Licínio de Almeida, Caculé, Dom Basílio, Brumado, Livramento de Nossa Senhora, Rio de Contas, Jussiape, Abaíra, João Correia, Brejo de Cima, Guiné, Vale do Capão, Palmeiras, Seabra, Lagoa do Dionísio, Brejo da Fazenda, Brotas de Macaúbas, Ipupiara, Cedro, Gentio do Ouro, Itajubaquara, Gameleira do Assuruá, Santo Inácio e Xique-Xique.


Fim!

A grande marca no mapa do Brasil das localidades por onde a Expedição passou e onde se encontra a Serra do Espinhaço, a Cordilheira Brasileira

Meu nome é Fabiano Spinelli Lisa, porém muitos dos meus amigos me conhecem como Zig. Tenho 40 anos, formado em Administração de Empresas com ênfase em Comércio Exterior ECA, entretanto, nunca atuei na área. Já fiz um pouco de tudo: vendedor de rosas, demonstrador de vídeo game, propagandista de laboratório farmacêutico, entregador de pizzas, pintor, cumim, garçom, bartender, recepcionista de pousada, guia de turismo, gerente de pousada, consultor de vinhos, instrutor de atendimento em hospitalidade, empresário (tive uma lanchonete), produtor de eventos, assistente de fotografia e nos últimos anos me tornei fotógrafo e film maker. Atualmente moro na cidade de São Paulo. Sou mineiro de nascença, paulistano de criação e cidadão do mundo por escolha. Já morei, além de São Paulo, em Nápoles na Itália, Santa Bárbara na Califórnia, Boston em Massachusetts, na Chapada Diamantina na Bahia e na cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro.

Para conhecer mais:

www.fabianozig.com.br

www.expserradoespinhaco.blogspot.com.br/